Introdução
São denominadas glicogenoses as afecções decorrentes
de erro metabólico hereditário que resulta em anormalidade
da concentração e/ou da estrutura do glicogênio
em qualquer tecido do organismo.
O glicogênio é um polissacarídeo presente em
todas as células animais, sendo particularmente abundante
no fígado e músculos. Sofre despolimerização
e fosforilação liberando a glicose necessária
para manter os processos celulares e a normoglicemia durante o jejum.
A glicogenose tipo I é caracterizada pela deficiência
de glicose-6-fosfatase (G-6-Pase), enzima-chave no metabolismo do
glicogênio. Representa cerca de 25% das glicogenoses.
A G-6-Pase é um sistema multicomponente que compreende o
sítio ativo na superfície luminal do retículo
endoplasmático e três translocases. A deficiência
da unidade catalítica é chamada Glicogenose tipo Ia,
a deficiência da translocase 1 corresponde ao tipo Ib e da
translocase 2, ao tipo Ic. Mais recentemente, a deficiência
da translocase 3 e da subunidade catalítica SP também
foram demonstradas e receberam a denominação de Glicogenose
Id e IaSP, respectivamente.
Em 1929, von Gierke demonstrou aumento da concentração
de glicogênio nos tecidos em autópsias de dois jovens
que apresentavam epistaxes e outras manifestações
hemorrágicas().
Gerty & Cori, em 1952, examinando fígados de pacientes
com sintomas semelhantes, demonstraram a ausência parcial
ou total da enzima G-6-Pase; a entidade foi então denominada
doença de von Gierke().
Em 1976 e 77, estudos conduzidos por Nordlie et al., através
de biópsias de fígado de dois pacientes jovens, mostraram
níveis da enzima G-6-Pase normais, mas a sua atividade diminuída().
O metabolismo do glicogênio envolve, no mínimo, oito
enzimas. As glicogenoses podem ser classificadas de acordo com o
defeito enzimático ou fatores clínicos, ou ainda associando
ambos. A classificação (Tabela1) é baseada
no defeito enzimático, levando em consideração
os principais tecidos afetados().
Tabela 1 -
Classificação das glicogenoses
A glicose da dieta é conduzida pela veia porta até
o fígado e, através de uma hexoquinase, transforma-se
em glicose-6-fosfato (G-6-P). A G-6-P é o principal precursor
para a síntese do glicogênio e participa do ciclo das
pentoses, ciclo do ácido aracdônico e glicólise().
O papel do fígado é proporcionar a liberação
de glicose para os vários órgãos. Em situações
de estresse ou quando os níveis de glicose diminuem, o fígado
libera rapidamente a glicose na corrente sangüínea que
a conduz aos vários órgãos, inclusive o cérebro().
O glicogênio é um polissacarídeo de alto peso
molecular (2 a 5 milhões) existente na maioria das células
dos mamíferos, principalmente no fígado e músculos,
para manter constante a concentração de glicose circulante
e suprir as necessidades energéticas imediatas dos tecidos().
É composto de moléculas de glicose ligadas em cadeias
por pontos de ramificação. As cadeias são unidas
por ligações 1,4 e os pontos de ramificações
por ligações 1,64.
A síntese do glicogênio ocorre a partir da glicose-1-fosfato
(Figura 1). A G-6-P está em equilíbrio com a G-1-P
através de uma reação catalizada pela fosfoglicomutase.
A seguir, para a síntese do glicogênio, a G-1-P é
convertida à uridinadifosfoglicose (UDPG) por uma pirofosforilase.
A UDPG fornece unidades glicosil, reação catalizada
pela glicogênio sintetase, e estas unidades são incorporadas
à molécula de glicogênio através de uma
ligação 1,4. A enzima responsável por esta
ligação é a amilo-1,4-1,6-transglicosidase
ou enzima ramificadora. A molécula de glicogênio torna-se
uma estrutura ramificada com alguns de seus ramos voltados para
cima para proteger da ação enzimática(,).
Figura 1 - Síntese e degradação do glicogênio
Os hormônios glucagon, adrenalina, vasopressina e angiotensina
II podem ativar a glicogenólise. A degradação
do glicogênio ocorre através da ação
da fosforilase e amilo-1,6-glicosidase. O sistema fosforilase é
composto da fosforilase a (ativa) e b (inativa).
A ativação é iniciada pelo glucagon e adrenalina
que influenciam na liberação do AMP-cíclico
através de ATP. O controle da síntese de glicogênio
depende, em parte, da glicogenólise, devido à inibição
da glicogênio sintetase pela fosforilase.
A fosforilase retira moléculas de G-1-P das partes laterais
do glicogênio, rompendo as ligações 1,4. A amilo-1,6-glicosidase
hidrolisa as ligações 1,6. A degradação
do glicogênio resulta em 90% de G-1-P e 8 a 12% de glicose
livre. Para que a glicose seja liberada pelo fígado, é
necessária a atuação da G-6-Pase que cataliza
a seguinte reação():
glicose-6-fosfato + H2O = glicose + Pi.
A G-6-Pase é encontrada em grande quantidade no fígado,
rins e mucosa do intestino delgado. Pequena quantidade dessa enzima
é detectada nas células beta do pâncreas, adrenais,
cérebro, baço, testículos e vesícula
biliar().
A G-6-Pase hepática é um sistema complexo que contém
no mínimo três proteínas transportadoras em
adição à unidade catalítica e o cálcio
ligado à proteína regulatória(-).
As proteínas transportadoras têm as seguintes funções:
T1 - transporta a G-6-P através da membrana do retículo
endoplasmático (RE); T2 - proteína que transporta
o pirofosfato para o lúmen do RE e, em sentido contrário,
o fosfato liberado pela reação de degradação
da G-6-P; e T3 - transporta a glicose, liberada pela hidrólise
da G-6-P, para fora do RE10,12.
Conseqüências metabólicas
Hipoglicemia
Como conseqüência da hipoglicemia, a insulina diminui,
enquanto os níveis de glucagon se elevam. A hipoglicemia
bioquímica pode não ser acompanhada de sintomas, devido
à utilização do ácido láctico
como substrato para o metabolismo cerebral. Em razão disso,
torna-se pouco provável que os pacientes tenham lesão
cerebral nesses episódios().
Com o aumento da idade, há tendência para a diminuição
da hipoglicemia, talvez por redução do consumo energético().
Acidose Láctica
O lactato geralmente está aumentado cerca de quatro vezes
os valores normais. O ácido láctico, produzido normalmente
por processos anaeróbicos nos músculos e hemácias,
é removido e metabolizado no fígado vias ciclo do
ácido tricarboxílico e piruvato, desviado para a síntese
de ácido graxo ou para a gliconeogênese. O acúmulo
de ácido láctico na deficiência de G-6-Pase
é decorrente de sua não utilização para
a gliconeogênese.
É interessante notar que mesmo com o tratamento ideal em
que a glicose é mantida em níveis normais, a concentração
de lactato não diminui totalmente até o valor habitual
(entre 3-5 mmoles/l), possibilitando sua ação como
protetor para o sistema nervoso central().
Hiperuricemia
A hiperuricemia resulta tanto da diminuição da depuração
renal de urato, secundária à competição
com o ácido láctico e outros, quanto do aumento da
produção do ácido úrico. A síntese
do ácido úrico é regulada pela biodisponibilidade
do oxigênio, ácidos graxos, fosfato inorgânico
e glicose. A degradação do ATP se acelera em resposta
à hipoglicemia e ao glucagon, e sua ressíntese requer
glicose. Dessa forma, ocorre acúmulo de ADP, que é
convertido a xantina, hipoxantina e ácido úrico(,).
A gota, os cálculos renais e a nefropatia são as conseqüências
da hiperuricemia(,-).
Hipofosfatemia
A hipofosfatemia geralmente é vista durante os episódios
hipoglicêmicos. A G-6-P não pode ser convertida em
glicose e, conseqüentemente, o fosfato também não
é liberado da molécula de G-6-P, resultando em depleção
de fosfato intracelular. A hipofosfatemia ocorre por um desvio compensatório
do fósforo extracelular para o interior da célula6.
Hiperlipidemia
Os níveis de triglicérides podem chegar a 4.000-6.000
mg/dl, enquanto o colesterol pode atingir 400-600 mg/dl. O perfil
lipídico mostra LDL elevado, HDL reduzido, apolipoproteína
CIII, B e E elevadas, AI e AII diminuídas().
A hiperlipidemia se deve ao aumento dos produtos glicolíticos
como o NADP, NADH, fosfato, glicerol-3-fosfato e coenzima A, essenciais
para a síntese de colesterol e ácidos graxos. A hepatomegalia
acentuada na glicogenose se deve mais à deposição
de gordura no fígado do que ao acúmulo de glicogênio
nos hepatócitos(,).
O perfil lipídico sugere que os pacientes deveriam apresentar
alto risco para doença coronariana. No entanto, não
há relatos de doença isquêmica precoce em pacientes
com glicogenose tipo I().
O potencial aterogênico dos triglicérides é
um assunto controverso, enquanto que o colesterol geralmente é
aceito como um fator de risco significante para doença coronariana;
a disfunção endotelial acontece precocemente no desenvolvimento
de aterosclerose. Entretanto, estudos da função endotelial
em seis indivíduos com glicogenose Ia foram normais, a despeito
dos níveis de colesterol e triglicérides().
As alterações no metabolismo de carboidratos de pacientes
com diabetes mellitus freqüentemente são acompanhadas
de aumento de triglicérides, com risco elevado para doença
coronariana. Apesar do aumento significante do nível de triglicérides
na glicogenose tipo I, os pacientes têm o mesmo risco para
aterosclerose que os indivíduos normais(,).
A desintoxicação dos radicais livres parece ser o
principal fator de proteção para a integridade da
membrana celular. A G-6-P, acumulada dentro da célula, pode
ser transferida para o ciclo das pentoses, o que conduz a um aumento
na produção de NADPH2 e ativação do
sistema de detoxicação de radicais livres. No ciclo
das pentoses, a G-6-P é metabolizada pela glicose - 6 - fosfato
desidrogenase (G6PD), que converte a G-6-P para 6-fosfogluconato.
O produto final do ciclo é frutose-6-fosfato, gliceraldeído
e dois moles de NADPH2, que serve como doador de hidrogênio
para a enzima glutationa redutase. A glutationa redutase converte
H2O2 a H2O nas hemácias e outras células. O oxigênio
é transformado em radical livre por ação de
oxidases.
Assim, a detoxicação de cada molécula de peróxido
de hidrogênio requer uma molécula de NADH2, fornecido
pela G-6-P (Figura 2).
Figura 2 - Detoxicação do peróxido de hidrogênio
Outro possível fator que contribui para a prevenção
do desenvolvimento precoce de aterosclerose está relacionado
à diminuição da adesão plaquetária
e, em conseqüência, um tempo de sangramento prolongado().
Os estudos indicam que o manejo da dieta associa-se com a queda
dos níveis de triglicérides, mas estes não
chegam a alcançar valores normais. A associação
de clofibrato e niacina teve sucesso no controle da trigliceridemia
em pacientes que não responderam à dieta().
Disfunção plaquetária
Os mecanismos que provocam alteração na agregação
e adesividade plaquetária não são conhecidos.
Como conseqüência, os pacientes têm sangramentos
nasais freqüentes e tendência para hemorragias durante
procedimentos cirúrgicos. O controle metabólico da
doença corrige essas alterações().
Complicações renais
Um problema importante na glicogenose I é a doença
renal progressiva. Parece que um considerável número
de pacientes, após um período de hiperfiltração
renal silenciosa, desenvolve danos renais com proteinúria,
hipertensão e disfunção renal subseqüente.
Na biópsia renal encontra-se glomeruloesclerose focal, com
a intensidade da fibrose proporcional ao grau de insuficiência
renal(-).
A nefropatia por gota e a nefrocalcinose podem estar presentes.
A hipercalciúria, provavelmente, é um fenômeno
secundário a alterações da acidificação
renal().
Os estudos confirmam que a disfunção renal ocorre
predominantemente a partir da segunda década de vida. A proteinúria
constitui a apresentação clínica típica.
O aumento da excreção de beta 2-microglobulina é
um indicador sensível de lesão túbulo-intersticial().
O tratamento dietético da glicogenose acompanha-se da melhora
das alterações renais. A rápida resposta ao
tratamento pode explicar a razão pela qual a disfunção
renal não é encontrada mais freqüentemente.
Adenomas e neoplasias hepáticas
Os adenomas hepáticos se desenvolvem em cerca de 50 a 70%
dos pacientes com glicogenose tipo I a partir da segunda e terceira
décadas de vida. As complicações que podem
acontecer nos adenomas são hemorragia aguda e transformação
maligna. A presença de sintomas agudos pode indicar hemorragia
dentro do tumor(,).
Os tumores são múltiplos, pequenos e não capsulados.
O primeiro relato de carcinoma hepático em pacientes com
glicogenose foi em 1969, por Zanzeneh et al., que documentaram a
transformação de um adenoma hepático em carcinoma
em um período de 18 meses().
Posteriormente, vários pesquisadores relataram transformações
malignas em adenomas nos seus pacientes(-).
O aumento dos nódulos na tomografia computadorizada e na
ultra-sonografia (US), com bordas de limites imprecisos e tecido
hepático preservado ao redor, sugerem transformação
maligna dos adenomas. Uma biópsia dirigida deve ser realizada
se for detectado o crescimento do tumor().
O adenoma hepático na glicogenose predomina no sexo masculino
na proporção de 2:1, enquanto os adenomas de outras
origens predominam no sexo feminino. A histologia é semelhante
a de outros adenomas().
A patogênese não está bem esclarecida. Algumas
hipóteses incluem desequilíbrio da relação
glucagon/insulina; sobrecarga de glicogênio celular; ativação
proto-oncogene().
Os estudos mostram que a alfa-fetoproteína não prediz
malignidade. Testes ideais para screening carecem de mais estudos.
O US ou a cintilografia a cada 6 ou 12 meses, a partir dos 20 anos
de idade, têm sido recomendados por diversos autores para
a monitoração dos adenomas().
Apresentação clínica
Glicogenose Ia
Como os pacientes com glicogenose não são capazes
de liberar a glicose do fígado, a hipoglicemia seguindo pequenos
períodos de jejum e a hepatomegalia são os sinais
mais comuns dessa afecção. No entanto, o quadro clínico
pode variar consideravelmente. Classicamente, a doença é
descrita no período neonatal. Os lactentes apresentam abdome
protuberante e hipoglicemia com poucas horas de jejum ou após
infecções. Os sintomas decorrentes da hipoglicemia
incluem a palidez, fome excessiva, sudorese e crises convulsivas.
Ao exame físico nota-se obesidade troncular contrastando
com as extremidades finas, facies de boneca e hepatomegalia. O fígado
tem consistência habitual, superfície lisa, não
doloroso e pode atingir a fossa ilíaca direita e o flanco
esquerdo. O retardo estatural instala-se rapidamente e pode ser
dominante na apresentação clínica(,,,,,).
Existe tendência para adiposidade exagerada, e a musculatura
é pouco desenvolvida.
Nas crianças maiores podem ser encontrados xantomas, principalmente
nos joelhos, cotovelos e nádegas. Quando os xantomas estão
presentes no septo nasal, podem contribuir para epistaxes. O atraso
de idade óssea e a osteoporose associada a fraturas também
podem ser evidenciados, em conseqüência da acidemia persistente
e do balanço negativo de cálcio.
O baço usualmente não está aumentado. Apesar
do aumento do tamanho dos rins, a função renal em
geral não está alterada. Entretanto, a partir da segunda
década de vida, os pacientes poderão desenvolver nefropatia
progressiva.
A acidose metabólica persistente pode produzir sintomas
como fraqueza, cefaléia, taquipnéia e mal-estar. O
ácido láctico, por outro lado, pode ser usado como
fonte de energia e, dessa forma, o paciente não tem sintomas
hipoglicêmicos freqüentes.
A glicogenose tipo I não provoca cirrose ou insuficiência
hepática. Por outro lado, a maioria dos pacientes acima de
15 anos de idade desenvolvem adenomas hepáticos.
Glicogenose Ib
As glicogenoses Ia e Ib são clinicamente muito semelhantes,
exceto por alguns sinais característicos. A glicogenose Ib
é complicada adicionalmente por infecções piogênicas,
gengivoestomatite recorrente e doença inflamatória
intestinal relacionadas à neutropenia e disfunção
de neutrófilos, não observadas no tipo Ia.
Gengivoestomatite recidivante: caracteriza-se por iniciar
com lesões maculares, evoluindo para úlceras superficiais,
dolorosas à alimentação. A biópsia da
lesão mostra apenas um infiltrado inflamatório inespecífico,
e os estudos bacteriológicos, virológicos e micológicos
são negativos().
Infecções recorrentes: em uma série
de 21 pacientes Ambruso et al. verificaram predisposição
para infecção de gravidade variável em 15 pacientes.
Em ordem decrescente de freqüência, os principais sítios
de infecção foram otite, pneumonia, infecções
cutâneas (particularmente perianal), infecções
do trato urinário, raramente sepse e osteomielite(). As infecções
são predominantemente por estafilococos e alguns gram-negativos
(E. coli e Pseudomonas aeruginosa). Cerca de 80% das infecções
são múltiplas e iniciam-se no primeiro ano de vida().
A freqüência das infecções usualmente não
está relacionada com a gravidade da neutropenia().
Vários estudos comprovaram a baixa contagem e as anormalidades
da função dos neutrófilos(,). As alterações
dos neutrófilos incluem mobilidade e aderência reduzidas,
defeitos na atividade bactericida e fagocitose, redução
na produção de ânion superóxido e da
atividade do shunt da hexose-monofosfato (HMP)(). Apesar dos diversos
trabalhos demonstrarem essas alterações, a patogênese
permanece desconhecida().
O defeito primário parece ser a redução da
disponibilidade de G-6-P, cuja produção depende de
transporte de glicose para dentro da célula. A alteração
no transporte de glicose para o interior dos polimorfonucleares
provavelmente acontece por uma redução do número
ou atividade dos transportadores e pode ser responsável pelos
danos funcionais dos neutrófilos().
Estudos adicionais são necessários para comprovar
a relação entre as células fagocitárias
anormais e os defeitos hepáticos conhecidos na glicogenose
tipo Ib().
À punção da medula óssea encontra-se
hiperplasia da séria mielóide e atraso na maturação
de precursores dos neutrófilos, responsável pela neutropenia8.
Doença inflamatória intestinal: a doença
inflamatória intestinal indistinguível da doença
de Crohn parece estar relacionada à disfunção
de neutrófilos presente na glicogenose Ib(-). Doença
inflamatória semelhante à doença de Crohn foi
identificada na neutropenia congênita, neutropenia cíclica
e outros estados neutropênicos como a leucemia, caracterizadas
por deficiência na produção de agentes oxidantes
microbicidas para a lise das células fagocitadas(-).
Com base nesses achados, os autores recomendam que os pacientes
com glicogenose Ib devam ser investigados para doença inflamatória
intestinal.
Outras manifestações
A periodontite é uma complicação relativamente
comum da glicogenose Ib(). A doença periodontal em crianças
pode ocorrer como manifestação isolada ou fazer parte
de doenças sistêmicas como a síndrome de Papillon-Lefévre,
hipofosfatasia e neutropenia cíclica. Já foi demonstrada
a associação de periodontite com desordens quantitativas
e qualitativas dos neutrófilos, tal como acontece na glicogenose
Ib().
Estudos de Burchell et al. com 39 vítimas de Síndrome
da Morte Súbita do Lactente mostraram que 10 dessas crianças
tinham glicogenose Ib(). Foram também descritas lesões
oculares associadas às glicogenoses Ia e Ib().
Diagnóstico Laboratorial
O diagnóstico das glicogenoses é de grande importância
visto que a abordagem terapêutica é simples e eficiente.
As alterações laboratoriais mais freqüentes são:
- hipoglicemia após 3 ou 4 horas de jejum;
- aumento de ácido láctico, colesterol, ácidos
graxos, triglicérides, fosfolípides e ácido
úrico;
- aumento discreto de aminotransferases.
Tradicionalmente, os testes de tolerância ao glucagon, galactose,
frutose e glicose foram usados no diagnóstico das glicogenoses.
Na glicogenose tipo I a glicemia não responde à administração
de glucagon. Como os pacientes são incapazes de converter
a galactose e a frutose em glicose, a administração
desses açúcares é seguida de aumento do lactato
e, conseqüente, de acidose metabólica, sem resposta
glicêmica. Com a administração de glicose, o
nível de lactato se normaliza. É interessante lembrar
que o teste de tolerância com o glucagon pode ser útil
para distinguir as glicogenoses do tipo I e III. Na glicogenose
tipo I, não há resposta ao glucagon tanto em jejum
quanto após a alimentação. No entanto, na glicogenose
tipo III ocorre resposta glicêmica ao glucagon quando o teste
é realizado após dieta. Os testes devem ser interrompidos
logo que o paciente apresente sintomas(-).
A determinação da atividade da enzima G-6-Pase em
amostra de tecido hepático obtido por biópsia confirma
o diagnóstico(,,,,). Atualmente temos disponível
a determinação da atividade da enzima glicose-6-fosfatase
em tecido hepático fresco e após congelação,
realizada na Faculdade de Farmácia e Bioquímica da
Universidade Federal de Minas Gerais. Na glicogenose tipo Ia a atividade
enzimática está ausente no tecido hepático
fresco e congelado, enquanto no tipo Ib, a atividade da G-6-Pase
é normal no tecido congelado, em virtude da ruptura do retículo
endoplasmático durante a congelação e no processamento
com solução hipotônica.
No futuro, estudos de DNA serão preferidos para o diagnóstico
das glicogenoses tipo I, possibilitando inclusive o diagnóstico
pré-natal().
Achados histológicos
Exceto na glicogenose tipo IV, as características histológicas
das glicogenoses hepáticas são muito semelhantes().
Na glicogenose tipo I, as células hepáticas encontram-se
tumefeitas devido ao acúmulo de glicogênio. Os hepatócitos
são pálidos e possuem grandes vacúolos de gordura
no citoplasma; a membrana citoplasmática encontra-se espessada,
com aspecto de uma célula vegetal (plant-like-cell). O parênquima
tem aspecto de mosaico devido ao aumento dos hepatócitos.
A concentração de glicogênio varia de 5 a 7
g/ 100g fígado e a atividade da G-6-Pase está diminuída
ou ausente(,).
Tratamento
Glicogenose Ia
Dieta
A abordagem dietética na glicogenose tipo I pode ser dividida
historicamente em três fases, que refletem a experiência
e o conhecimento progressivos da doença. Na primeira metade
do século foi proposto o emprego de refeições
freqüentes com alimentos contendo glicose de hora em hora.
Muitos pacientes não sobreviviam ou, na adolescência,
tinham importante déficit de crescimento(,).
O maior avanço se deu há 14 anos com a infusão
nasogástrica noturna (ING) de dieta elementar introduzida
por Green et al.(). Cerca de sete anos depois Chen et al. relataram
seus estudos com uso de carboidrato cru, tal como o amido de milho,
que prolonga a normoglicemia no período pós-prandial().
Observou-se melhora clínica e metabólica considerável.
Posteriormente, Green et al. combinaram as vantagens do fornecimento
contínuo de glicose e nutrientes à noite com refeições
freqüentes durante o dia().
Os objetivos do tratamento dietético são a correção
da hipoglicemia e, conseqüentemente, melhoria nos níveis
de lactato, ácido úrico, triglicérides e colesterol
sanguíneo; promover taxas de crescimento próximas
do normal; fornecer outros nutrientes além dos carboidratos
- lipídeos, proteínas, vitaminas e minerais - sem
administrar excesso de calorias.
Os nutrientes devem ser fornecidos de acordo com a RDA para a idade().
A distribuição calórica da dieta é de
60 a 70% de carboidratos, 20 a 25% de lipídeos e 10 a 15%
de proteínas(,). O colesterol dietético fica restrito
a menos de 200 mg/dia().
Por não poderem ser metabolizados na deficiência de
glicose-6-fosfatase e por contribuir para uma bioquímica
anormal, é recomendado que a dieta seja isenta de frutose
e galactose (restrição de leite, frutas e sacarose).
Entretanto, não há concordância universal sobre
a restrição desses monossacarídeos(,).
Pacientes com glicogenose tipo I dependem completamente de fontes
exógenas de glicose, que devem ser administradas com freqüência
ou continuamente, por infusão gástrica.
A criança deve consumir pequenas refeições
ricas em amido, a cada 3 horas, durante o dia(,).
Paralelamente, é fornecido amido de milho cru diluído
em água(,-).
Chen et al. utilizaram a dose de 1,75 a 2,5 g/kg de peso a cada
4 a 6 horas().
Wolfsdorf et al. demonstraram um bom resultado na glicemia por
um período de até 6 horas com o uso do amido na dose
de 1g/kg a cada 4 horas durante o dia e a intervalos de 5 horas
durante a noite (p. ex. 21 e 2 horas)(-).
É importante ressaltar que o amido de milho cru não
deve ser acrescentado à água morna ou quente, ou à
limonada, pois tal procedimento acelera sua hidrólise().
Smit et al. demonstraram que flocos de cevada na dose de 1,5 g/kg
de peso também funcionam como um carboidrato lento, porém
é menos palatável que o amido de milho().
O macarrão parcialmente cozido é um carboidrato semilento
e pode ser uma alternativa para prolongar o intervalo entre as refeições
e, portanto, reduzir a freqüência de refeições
durante o dia().
O amido de milho cru, por unanimidade, é a melhor opção
como fonte de carboidrato para pacientes com glicogenose tipo I.
Isso foi demonstrado também através da comparação
dos resultados obtidos com o uso de dextrose e amido de milho associado
à dextrose na proporção de 3:1(,). Além
disso, o amido de milho cru mantém a glicemia em um valor
mais ou menos constante por um período de até 240
minutos(). Devido a isso, o uso do amido de milho cru deve ser iniciado
tão logo quanto possível.
A amilase pancreática e a glicoamilase intestinal são
as duas enzimas primariamente responsáveis pela hidrólise
do amido no organismo. Na idade de 1 mês as crianças
apresentam níveis de glicoamilase e de dissacaridase comparáveis
aos de adultos jovens, enquanto que a atividade da amilase pancreática
necessária para a digestão do amido de milho cru é
desprezível no período neonatal. Os níveis
de amilase pancreática não alcançam os níveis
de um adulto antes dos 2 anos de idade, mas sua atividade pode ser
induzida pelo uso do amido(). Apesar dessa indução,
o uso do amido de milho cru como terapia para a correção
ou manutenção da glicemia é recomendado somente
depois do 8º mês de vida devido à intolerância
apresentada por uma criança com essa idade, em um estudo
limitado().
Até que a criança atinja os 8 meses de idade a infusão
intragástrica de glicose deve ser a terapia de escolha para
corrigir ou prevenir a hipoglicemia noturna(). A infusão
noturna de glicose é feita por sonda nasogástrica
ou gastrostomia, por um período de 8 a 12 horas durante a
noite, com o auxílio de uma bomba de infusão contínua.
A fórmula para alimentação por sonda deve ser
calculada para suprir um terço (1/3) ou aproximadamente 35%,
ou dois quintos (2/5) da necessidade calórica total; o restante
das calorias é proporcionado pela alimentação
freqüente durante o dia(,). O tipo de fórmula, a concentração
e a taxa ótima de infusão devem ser definidas durante
a hospitalização da criança. Medidas da taxa
de produção de glicose sugerem que seja iniciada uma
infusão de glicose a 7 mg/kg/min e depois ajustada para 4
a 6 mg/kg/min(). É recomendado que a glicose seja infundida
na forma de solução de dextrose a 25% ou 50%().
A primeira refeição do dia deve ser oferecida ao
bebê 30 minutos antes da interrupção da ING
para afastar a possibilidade de uma queda rápida na glicose
sangüínea. A última refeição do
dia é oferecida dentro de um período de 3 horas antes
do início da infusão noturna(). Durante o dia, fórmulas
infantis contendo glicose ou polímeros de glicose (maltose-dextrina)
são fornecidas a cada 3 horas(,).
Os outros alimentos começam a ser introduzidos na idade
usual (4 a 6 meses), dando-se ênfase aos carboidratos complexos
como aveia, cevada, arroz, massas e alguns legumes. Esses carboidratos
se mostraram mais eficientes na manutenção da normoglicemia
do que batatas e pães. Grãos parcialmente cozidos
e massas, que demoram mais a ser digeridos, são particularmente
úteis().
Wolfsdorf et al. sugerem que a criança possa ser amamentada
ao seio a cada 3 ou 4 horas, além de receber uma suplementação
de glicose diluída em água().
Tanto a ING quanto o amido de milho cru demonstraram bons resultados
na manutenção da normoglicemia e, conseqüentemente,
da taxa de crescimento(,). Entretanto, a ING apresenta riscos
decorrentes dos problemas técnicos relacionados ao uso da
bomba de infusão (obstrução, falta de energia
seguida de interrupção do fluxo), além do desgaste
emocional para os pais e a criança.
Pais, babás e professores das crianças com glicogenose
tipo I devem ter pronto acesso a fontes de glicose ou polímeros
de glicose para a correção imediata de episódios
de hipoglicemia. Esses eventos indesejáveis são mais
comuns quando a criança deixa de fazer uma refeição,
apresenta vômitos após a refeição, faz
uma atividade física fora do usual ou quando adoece. Nesse
caso, a administração sob a forma líquida de
polímeros de glicose (polycose) ou glicose (xarope karo ou
dextrose) eleva a glicemia até valores dentro da faixa de
normalidade().
As frutas, leite e derivados são permitidos em quantidades
limitadas, à medida que a criança cresce e dependendo
do bom controle metabólico. Golberg et al. sugerem que essa
liberação possa ser feita, levando-se em consideração
o controle metabólico, entre 5 e 14 anos de idade. Após
a puberdade a alimentação pode ser normal, porém
isenta de sacarose().
Após o início de um regime rigoroso, os pacientes
têm uma redução marcante nos níveis de
ácido úrico e lipídeos sanguíneos. Porém
os níveis de triglicérides e colesterol permanecem
acima da normalidade, mesmo após vários anos de tratamento().
Transplante Hepático
Houve grande progresso no tratamento dos pacientes com glicogenose
nas duas últimas décadas. A infusão nasogástrica
noturna, isolada ou associada às refeições
freqüentes com amido cru, tem se mostrado eficiente e benéfica,
contribuindo para a prevenção ou regressão
dos adenomas hepáticos(,,,). Outro recurso terapêutico
- o transplante ortotópico de fígado - foi utilizado
pela primeira vez na glicogenose em 1983(). O transplante pode ser
considerado naqueles pacientes que não responderam a um manejo
dietético bem conduzido, necessitando de internações
freqüentes, com grande prejuízo de sua qualidade de
vida, ou nas crianças com déficit estatural importante.
O transplante hepático tem sido utilizado com sucesso nos
casos de adenomas com aumento progressivo do tamanho, quando é
impossível afastar a possibilidade de transformação
maligna, e naqueles casos em que a ressecção cirúrgica
dos tumores adenomatosos esteja inviabilizada().
Hiperuricemia
O tratamento dietéico diminui os níveis de ácido
úrico. O alopurinol pode ser usado nos pacientes com glicogenose
e hiperuricemia importante. A dose para crianças é
10mg/kg/dia, dividida em duas tomadas. Deve-se aumentar a ingesta
líquida para manter a diurese acima de 2 litros/dia. Na insuficiência
renal, é necessário o reajuste da dose().
Hiperlipidemia
A hiperlipidemia responde parcialmente ao tratamento dietético.
O óleo de peixe tem sido utilizado para o controle das anormalidades
lipídicas. Há relatos de que o óleo preserva
a retina, atua como antiinflamatório e inibe o desenvolvimento
e crescimento de tumores. A digestão inadequada e má-absorção
do óleo de peixe, assim como a supressão da formação
de VLDL estão implicados no mecanismo de ação().
Disfunção plaquetária
A infusão de 1-deamino-8-D-arginina vasopressina (DDAVP)
pode ser útil no tratamento de episódios hemorrágicos
ou antes de procedimentos cirúrgicos em portadores de glicogenose
Ia. Administrado em dose única de 0,3 mg/kg, diluído
em 50ml de solução salina por via endovenosa, normaliza
o tempo de sangramento e corrige os níveis de fator VIII,
alterações presentes na glicogenose tipo I().
Glicogenose Ib
Dieta
O tratamento da glicogenose Ib comporta dois aspectos: manter uma
glicemia estável e tratar as infeções recidivantes.
A manutenção da glicemia é obtida através
da utilização da alimentação enteral
noturna e de carboidratos de absorção lenta, como
na glicogenose tipo Ia().
Prevenção e tratamento das infecções
As alterações dos neutrófilos independem do
controle metabólico(,,). Esta constatação
estimulou os pesquisadores a buscarem outras opções
para o controle das infecções na glicogenose Ib.
Apesar do aumento do número de leucócitos após
realização de shunt portocava, este procedimento não
corrige a neutropenia da glicogenose tipo Ib(). Na glicogenose Ib
existe pouca experiência acerca do uso do shunt portocava.
O uso profilático contínuo de sulfametoxazol-trimetoprim
e o tratamento com antimicrobianos durante os episódios de
infecção aguda foi a primeira abordagem para as infecções
recorrentes e a doença inflamatória intestinal. Na
prática, a efetividade dessa estratégia terapêutica
é limitada().
A granulocitose é um efeito colateral freqüente da
terapia com lítio para doenças psiquiátricas.
Na glicogenose tipo Ib, o lítio mostrou um efeito positivo
na produção de fator estimulante de colônia
de granulócitos, um modulador essencial da maturação
de granulócitos(,). No entanto, o tratamento com lítio
é limitado em virtude dos seus efeitos colaterais potenciais
e da necessidade de monitoração freqüente da
sua concentração sérica, que tende a variar
consideravelmente68. Portanto, o carbonato de lítio não
tem sido recomendado para a profilaxia de infecções
na glicogenose Ib.
O aumento da contagem de neutrófilos, temporária
ou permanente, por fatores hematopoiéticos estimulantes de
colônias de granulócitos representa uma abordagem mais
promissora().
Diversos trabalhos foram conduzidos utilizando o GM-CSF (fator recombinante
humano estimulante de colônia de granulócitos-macrófagos)
e G-CSF (fator estimulante de colônias de granulócitos)
com bons resultados(,,,,).
A dose utilizada de GM-CSF foi de 7 mg/kg de peso/dia, administrado
por via subcutânea(). O G-CSF foi administrado na dose de
3 mg/kg de peso/dia, também por via subcutânea. O tratamento
por tempo prolongado usualmente é bem tolerado. A administração
do GM-CSF foi interrompida em alguns trabalhos devido a efeitos
colaterais locais (hiperemia)(,).
Os fatores hematopoiéticos estimulantes de colônias
de granulócitos também se mostraram úteis no
tratamento da doença inflamatória intestinal, presente
nos pacientes com glicogenose Ib. A melhora tão evidente
dos sinais e sintomas da doença intestinal, com a correção
da neutropenia, corrobora a hipótese de que as anormalidades
dos neutrófilos sejam responsáveis por estas alterações
inflamatórias.
Transplante Hepático
Na glicogenose Ib, o transplante hepático é útil
para o controle metabólico, como na glicogenose Ia, mas não
corrige a neutropenia().
Prognóstico
Na década de 70 os pacientes com glicogenose eram internados
com freqüência devido a hipoglicemia, febre e acidose.
A mortalidade era elevada, e os danos neurológicos permanentes
eram inevitáveis. Os sobreviventes apresentavam grande atraso
no desenvolvimento mental e no crescimento(,). O tratamento atual
tem alterado significativamente o curso clínico, e houve
dramática melhora do prognóstico nos pacientes com
glicogenose tipo I, com expectativa de vida ultrapassando a terceira
década.
O tratamento incompleto resulta em sérias conseqüências
metabólicas. A hiperuricemia, que pode resultar em gota na
segunda e terceira décadas de vida, tem sido controlada com
sucesso, em muitos pacientes, com o alopurinol().
Os adenomas hepáticos podem ter progressão para hepatomas
malignos, mas completa resolução tem sido documentada
como resultado do tratamento. Infelizmente, alguns casos não
respondem à terapia nutricional(,,,).
No adulto, as anormalidades bioquímicas tendem a se atenuar,
principalmente a hipoglicemia. Ao contrário, a hiperlipidemia
tende a se manter, embora não tenha sido observado maior
risco de aterosclerose().
As alterações renais mostram boa resposta ao tratamento
dietético bem conduzido.
|