Introdução
A tirosina é um aminoácido não-essencial,
proveniente da dieta, da hidroxilação da fenilalanina
ou do catabolismo protéico()
e pode ter duas diferentes rotas metabólicas: a sua conversão
a aminas biológicas através de várias etapas
catalisadas por enzimas específicas(,)
ou a sua oxidação no ciclo dos ácidos tricarboxílicos
a CO2 e H2O(,,).
A tirosinemia neonatal transitória (TNT) é devida
à imaturidade da enzima p-hidroxifenilpiruvato oxidase hepática,
ao elevado consumo de fenilalanina e tirosina e à relativa
deficiência de ascorbato(,).
Em neonatos com TNT nascidos a termo, os níveis séricos
costumam ser baixos nos primeiros dois dias pós-parto e alcançam
picos máximos na segunda semana de vida, podendo ocorrer
em até 30% dos prematuros().
A TNT se diferencia dos erros inatos do metabolismo associados ao
aumento sérico da tirosina por não estar vinculada
à herança genética e por apresentar atividade
normal das enzimas deficientes nas tirosinemias tipo I (fumarilacetoacetato
hidrolase), tipo II (tirosina aminotransferase), tipo III e hawkinsinuria
(4-hidroxifenilpiruvato dioxigenase) e alcaptonúria (ácido
homogentísico oxidase)().
A tirosinemia tipo I ou hepatorrenal, de quadro clínico mais
severo, pode manifestar-se já no período neonatal
por falência hepática aguda, cirrose, carcinoma hepatocelular,
síndrome de Fanconi, glomeruloesclerose e crises neuropáticas
periféricas();
e seu diagnóstico definitivo é realizado através
de ensaios enzimáticos específicos()
ou pela detecção de mutações no gene
que codifica a enzima fumarilacetoacetato hidrolase(,).
A tirosinemia tipo II está associada a retardo mental, hiperqueratose
palmar e úlcerações na córnea; a tipo
III, a moderado retardo mental, mas sem comprometimentos oftalmológicos
ou manifestações dermatológicas(). Embora a
maioria das crianças com TNT seja assintomática, efeitos
adversos no desenvolvimento não devem ser completamente desconsiderados().
Estudos prévios desenvolvidos por Mamunes e colaboradores()
em 15 neonatos a termo com TNT com valores entre 13,6 a 42,0mg/dL
(normal até 4,0mg/dL), durante, em média, 50 dias,
revelaram escores significativamente menores no desenvolvimento
intelectual dessas crianças devido à alta ingesta
protéica e à falta de suplementação
de vitamina C. O objetivo deste estudo foi avaliar a freqüência
de TNT em recém-nascidos em nosso meio, averiguar sua associação
com o aumento secundário da fenilalanina e estimar o tempo
decorrente até a normalização dos níveis
séricos de ambos os aminoácidos.
Métodos
Foram analisadas 457.870 amostras de sangue seco em papel filtro
SS 903, recebidas de todas as regiões do país (40,8%
do RS), obtidas por punção de calcâneo de crianças
entre 3 e 20 dias de vida, submetidas ao rastreamento neonatal para
doenças metabólicas e infecciosas junto ao Centro
de Triagem Neonatal, Porto Alegre, RS. A tirosina foi inicialmente
avaliada através de uma cromatografia de aminoácidos
em camada delgada(),
e um caso considerado positivo quando se apresentava visualmente
mais concentrado que o controle de referência (4,0mg/dL).
Os casos positivos foram confirmados através da dosagem da
tirosina e da fenilalanina em amostras séricas obtidas 5
a 20 dias após a punção de calcâneo (média
= 7; mediana = 10) por método fluorimétrico(,).
Foram excluídos do trabalho pacientes com coleta de calcâneo
obtida com mais de 20 dias de vida, amostras séricas obtidas
após 20 dias da primeira coleta de sangue seco em papel filtro
e 131 pacientes que não compareceram para confirmação
do primeiro teste alterado. Para efeito de acompanhamento, os pacientes
foram classificados em três grupos de acordo com os valores
séricos de tirosina, expressos em mg/dL. Grupo A: entre 4,1
e 10,0; grupo B: entre 10,1 e 25,0; e grupo C: acima de 25,0. Em
comum acordo com o pediatra, o geneticista ou, na ausência
desses em algumas regiões, com o responsável pela
criança, os pacientes do grupo A foram orientados para a
colheita de nova amostra sérica após 10 dias a contar
da obtenção da amostra anterior, sem restrição
protéica, mas com a ingesta de 100mg/dia de vitamina C. Em
pacientes dos grupos B e C, recomendou-se a diluição
do leite durante 2 semanas com água fervida ou água
de arroz (no sentido de diminuir temporariamente o aporte
protéico), seguido de uma semana de dieta livre, e repetiram-se
as determinações de fenilalanina e tirosina séricas,
devido à dificuldade em estabelecer rigidamente uma dieta
protéica contendo, no máximo, 3 a 4g/proteína/kg/dia
e levando-se em consideração que várias crianças
recebiam suplementação alimentar dependente de escasso
aleitamento materno e de diferentes níveis sócio-econômicos
das famílias envolvidas.
Resultados
Em 457.870 amostras, foram identificados 1.231 pacientes com tirosina
elevada que atenderam à solicitação de submeterem-se
à nova coleta. Destes, 822 já apresentavam níveis
séricos normais de tirosina (até 4,0mg/dL) na segunda
amostra, e em 409 observaram-se valores elevados: 414 foram classificados
no grupo A; 53 no grupo B; e 42 no grupo C (ver distribuição
na Figura 1). Das 409 crianças com tirosinemia, 118 apresentaram
hiperfenilalaninemia secundária, com níveis séricos
de fenilalanina entre 4,1 e 16,7mg/dL (normal: até 4,0 mg/dL)
e que normalizaram com a correção dos níveis
de tirosina. Esse dado corresponde a 9,6% de hiperfenilalaninemias
secundárias do total de 1.231 casos de TNT e a 28,9% dos
409 casos de hipertirosinemias prolongadas (tirosina ainda elevada
na segunda ou demais amostras de soro). Devido ao preenchimento
incompleto de dados de cada paciente submetido à triagem
neonatal, em apenas 153 das 409 amostras alteradas foi referida
a idade gestacional, das quais 33 crianças (21,5%) nascidas
com menos de 37 semanas de gestação. Nos pacientes
prematuros não foi sugerida a retirada do leite materno;
a hipertirosinemia variou entre 4,1 e 12,7 (média de 6,0mg/dL)
em 31 casos (94%); e dois pacientes com idades gestacionais de 36
e 34 semanas apresentaram tirosina sérica de 25,5mg/dL e
32,2mg/dL, respectivamente. Todos fizeram uso exclusivo de vitamina
C e normalizaram em um período de 30 a 83 dias. Estudo de
regressão linear entre os valores de fenilalanina e tirosina
mostrou um coeficiente de correlação de 0,007. Todos
os pacientes normalizaram seus níveis séricos de tirosina
e fenilalanina em um período máximo de 180 dias, sem
correlação com os valores obtidos na primeira amostra
de soro.
Figura 1 - Distribuição dos níveis séricos de tirosina em 1.231 pacientes com teste de triagem inicial positivo
Discussão
Devido à importância da detecção precoce
da tirosinemia hereditária, a triagem neonatal específica
para essa doença é rotina em dois Estados americanos
(Georgia e Maryland)()
e no Canadá (Quebec)().
Níveis elevados de tirosina podem produzir resultados falso
positivos para fenilcetonúria, quando essa doença
é pesquisada através de testes bacteriológicos
(teste de Guthrie) ou de alguns métodos fluorimétricos
automatizados()
que não contam com a especificidade dos novos testes enzimáticos(),
da cromatografia líquida de alta performance (HPLC) ou da
espectroscopia de massa().
O teste falso positivo pode ser causa de profundo stress familiar
devido à perspectiva de estar diante de uma doença
genética de difícil tratamento, prognóstico
reservado e evolução variável dependendo da
idade em que a doença é identificada. A utilidade
da cromatografia de aminoácidos em programas de triagem neonatal()
e os achados relativos às diferentes aminoacidopatias permanentes
ou transitórias por ela detectadas em nosso meio já
foram previamente publicados(,).
Embora a análise não seja quantitativa, sua eficácia
na discriminação dos diversos aminoácidos também
já foi por nós demonstrada().
Ainda que o aumento transitório da tirosina seja considerado
geralmente benigno, isso ainda não está completamente
definido, e dados da literatura demonstram que nem todas as crianças
hipertirosinêmicas têm desenvolvimento intelectual normal(,).
Os resultados apresentados neste estudo mostram que 1 em cada 372
crianças cuja amostra de sangue seco em papel filtro foi
obtida entre 3 e 20 dias de vida apresenta TNT; em 68 pacientes
detectaram-se níveis de tirosina dentro do intervalo de risco
descrito por Mamunes (13,6 a 42,0mg/dL)()
e em 10 pacientes, níveis de tirosina ainda mais elevados
(entre 42,0 e 52,6mg/dL). É importante ressaltar que um total
de 118 amostras de pacientes hipertirosinêmicos também
apresentaram níveis séricos de fenilalanina superiores
ao limite de referência (4,0 mg/dL), devido a um efeito de
retroinibição que diminui a velocidade da conversão
da fenilalanina em tirosina, os quais não podemos comprovar
se estavam em ascensão ou queda no momento da obtenção
do soro, mas cujos efeitos nocivos poderiam teoricamente levar a
graus variados de retardo mental().
Dependendo da especificidade do método de avaliação
utilizado, neonatos com níveis de fenilalanina dentro do
limite de normalidade (até 4,0mg/dL) podem ter um falso diagnóstico
de fenilcetonúria no teste do pezinho, devido
à interferência produzida pelos altos níveis
de tirosina. O coeficiente de correlação linear (r=0,007)
calculado pelos valores de fenilalanina e tirosina sugere que a
elevação dos níveis de fenilalanina não
está necessariamente associada aos valores de tirosina nesses
pacientes. Todos os pacientes estudados neste trabalho tiveram seus
níveis séricos normalizados após algum tempo,
o que pode estar relacionado com a administração de
vitamina C e/ou restrição protéica, de acordo
com dados previamente relatadas na literatura(,).
O mecanismo de ação da vitamina C está relacionado
à inativação da p-hidroxifenilpiruvato oxidase
hepática pelo seu próprio substrato, condição
esta que pode ser prevenida de forma inespecífica pelo aumento
da concentração do ascorbato sérico(). Os dados
do presente trabalho sugerem que a substituição precoce
do leite materno por leite integral, desnatado ou leite industrializado
pode estar relacionada ao aumento generalizado e transitório
de vários aminoácidos, particularmente tirosina, fenilalanina,
metionina, alanina, valina, serina, isoleucina, leucina, arginina,
serina, histidina e hidroxiprolina, encontrados em 42 pacientes
e cuja interpretação não faz parte do objetivo
deste estudo. Também nesses pacientes as concentrações
séricas desses aminoácidos normalizaram progressivamente,
com provável influência do menor aporte protéico
e da suplementação com vitamina C, em períodos
que variaram de 20 dias a 6 meses de vida. Como indicado na literatura(),
prematuridade, deficiência de vitamina C, ingesta protéica
superior a 5g/kg/dia e alimentação com leite animal
parecem estar relacionadas à TNT. A estimativa da incidência
de TNT é dependente dos valores de referência estabelecidos
pelo laboratório, do momento da obtenção da
amostra (tempo da última alimentação e idade
da criança) e da origem do leite ingerido. De acordo com
Mitchell e colaboradores(), não dispomos de estudos sobre
tirosinemia associada a dieta, desenvolvimento intelectual e etnia;
mas pode-se afirmar que sua incidência diminuiu gradualmente
na Europa, Estados Unidos e Canadá após a mudança
da alimentação baseada em leite animal para fórmulas
com menores concentrações protéicas e o estímulo
ao aleitamento materno.
Conclusões
O aumento de tirosina é a alteração mais freqüente
observada no nosso programa de triagem neonatal. A confirmação
de uma TNT em cada 372 amostras testadas e a presença de
hiperfenilalaninemia em 28,9% das mesmas evidenciam a necessidade
de monitoramento laboratorial desses pacientes, no sentido de previnir
os possíveis efeitos de desenvolvimento intelectual e/ou
motor provocados por altos níveis de tirosina, eventualmente
associados a aumento secundário da fenilalanina, e de acompanhamento
dos casos até seu completo esclarecimento diagnóstico.
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