Este artigo é dedicado a Maria de Lourdes Santos
Pardo - in memoriam
A doença falciforme
Doença de caráter genético, descrita pela primeira
vez em 1910 por Herrick (),
freqüente, mas não exclusiva, em indivíduos de origem
africana, é originada por uma mutação no cromossomo
11 ()
que resulta na substituição de um ácido glutâmico
pela valina na posição 6 da extremidade N-terminal na cadeia
β da globina, dando origem à hemoglobina S. Os eritrócitos
cujo conteúdo predominante é a hemoglobina S assumem, em
condições de hipóxia, forma semelhante à de
uma foice - daí o nome falciforme -, decorrente da polimerização
da hemoglobina S ().
Os glóbulos vermelhos em forma de foice não circulam adequadamente
na microcirculação, resultando tanto em obstrução
do fluxo sangüíneo capilar como em sua própria destruição
precoce. Este mecanismo fisiopatológico acarreta graves manifestações
clínicas, com maior freqüência após os 3 meses
de idade (Tabela 1) ().
Durante os 6 primeiros meses de vida, esses indivíduos são
geralmente assintomáticos devido aos altos níveis de hemoglobina
F ().
Tabela 1 -
Manifestações clínicas da doença falciforme
 |
Vaso-oclusão
Necrose avascular da medula óssea (crises álgicas/síndrome
mão-pé/necrose da cabeça do fêmur)
Filtração esplênica alterada (aumento do risco
de infecções por germes encapsulados)
Fibrose esplênica progressiva
Osteomielite
Síndrome torácica aguda
Vasculopatia cutânea (úlceras crônicas)
Priapismo
Retinopatias proliferativas
Acidente vascular encefálico
Acometimento renal (tubulopatia/insuficiência renal crônica)
Seqüestro de glóbulos vermelhos (agudo ou crônico)
Crescimento e desenvolvimento puberal atrasados
Hemólise
Anemia (Hb entre 6 e 9 g/100 ml)
Hiperbilirrubinemia, icterícia e pigmento biliar
Expansão da medula óssea
Crise de aplasia induzida pelo parvovírus humano B19 |
 |
Adaptada ()
O gene da hemoglobina S é um gene de alta freqüência
em toda a América, e no Brasil é mais freqüente nas
regiões sudeste e nordeste ().
Na África Equatorial, 40% da população é portadora,
e a doença falciforme atinge uma prevalência de 2 a 3% da
população ().
As hemoglobinopatias constituem uma das principais e mais freqüentes
doenças genéticas que acometem seres humanos; e, dentre
elas, a anemia falciforme é a doença hereditária
mais prevalente no Brasil (),
chegando a acometer 0,1 a 0,3% da população negróide,
com tendência a atingir parcela cada vez mais significativa da população,
devido ao alto grau de miscigenação em nosso país
().
De fato, estudos populacionais têm demonstrado a crescente presença
de hemoglobina S em indivíduos caucasóides ().
A porcentagem de mortalidade entre crianças menores de 5 anos
com anemia falciforme é de cerca de 25 a 30%, e a maioria das mortes
neste grupo é secundária a infecções fatais,
seqüestro esplênico ou crises aplásticas ().
Embora as maiores taxas de mortalidade ocorram nos 2 primeiros anos de
vida, a inclusão obrigatória da pesquisa de hemoglobinopatias
no exame de triagem neonatal (teste do pezinho) vem demonstrando ser um
passo importante para a diminuição dessas taxas, pois permite
a identificação precoce desses indivíduos e a conseqüente
introdução de profilaxia adequada e seguimento ambulatorial
regular ().
A atual expectativa de vida para a população americana
com anemia falciforme é de 42 anos para homens e 48 anos para mulheres
().
Embora muito superior aos 14,3 anos de 3 décadas atrás,
esta ainda se encontra muito aquém da expectativa de vida para
a população geral, o que evidencia a necessidade de maiores
investimentos e progressos no tratamento desses pacientes ().
O diagnóstico laboratorial da anemia falciforme é feito
através de eletroforese de hemoglobina, focalização
isoelétrica ou cromatografia líquida de alta performance
(HPLC). As cadeias β globínicas são detectáveis
em fase precoce da vida fetal, a partir da 10ª a 12ª semana
de gravidez, o que possibilitaria o diagnóstico pré-natal
da anemia falciforme ().
A doença falciforme manifesta-se em indivíduos homozigóticos
para a hemoglobina S e em combinação com outras hemoglobinas
anormais, o que pode resultar em doença falciforme com diversos
graus de gravidade: co-herança com um gene da hemoglobina C (SC),
um gene da β + talassemia (SAF), ou um gene da βo talassemia
(SF), em ordem decrescente de freqüência ().
A doença falciforme
Doença de caráter genético, descrita pela primeira
vez em 1910 por Herrick (),
freqüente, mas não exclusiva, em indivíduos de origem
africana, é originada por uma mutação no cromossomo
11 ()
que resulta na substituição de um ácido glutâmico
pela valina na posição 6 da extremidade N-terminal na cadeia
β da globina, dando origem à hemoglobina S. Os eritrócitos
cujo conteúdo predominante é a hemoglobina S assumem, em
condições de hipóxia, forma semelhante à de
uma foice - daí o nome falciforme -, decorrente da polimerização
da hemoglobina S ().
Os glóbulos vermelhos em forma de foice não circulam adequadamente
na microcirculação, resultando tanto em obstrução
do fluxo sangüíneo capilar como em sua própria destruição
precoce. Este mecanismo fisiopatológico acarreta graves manifestações
clínicas, com maior freqüência após os 3 meses
de idade (Tabela 1) ().
Durante os 6 primeiros meses de vida, esses indivíduos são
geralmente assintomáticos devido aos altos níveis de hemoglobina
F ().
O gene da hemoglobina S é um gene de alta freqüência
em toda a América, e no Brasil é mais freqüente nas
regiões sudeste e nordeste ().
Na África Equatorial, 40% da população é portadora,
e a doença falciforme atinge uma prevalência de 2 a 3% da
população ().
As hemoglobinopatias constituem uma das principais e mais freqüentes
doenças genéticas que acometem seres humanos; e, dentre
elas, a anemia falciforme é a doença hereditária
mais prevalente no Brasil (),
chegando a acometer 0,1 a 0,3% da população negróide,
com tendência a atingir parcela cada vez mais significativa da população,
devido ao alto grau de miscigenação em nosso país
().
De fato, estudos populacionais têm demonstrado a crescente presença
de hemoglobina S em indivíduos caucasóides ().
A percentagem de mortalidade entre crianças menores de 5 anos
com anemia falciforme é de cerca de 25 a 30%, e a maioria das mortes
neste grupo é secundária a infecções fatais,
seqüestro esplênico ou crises aplásticas ().
Embora as maiores taxas de mortalidade ocorram nos 2 primeiros anos de
vida, a inclusão obrigatória da pesquisa de hemoglobinopatias
no exame de triagem neonatal (teste do pezinho) vem demonstrando ser um
passo importante para a diminuição dessas taxas, pois permite
a identificação precoce desses indivíduos e a conseqüente
introdução de profilaxia adequada e seguimento ambulatorial
regular ().
A atual expectativa de vida para a população americana
com anemia falciforme é de 42 anos para homens e 48 anos para mulheres
().
Embora muito superior aos 14,3 anos de 3 décadas atrás,
esta ainda se encontra muito aquém da expectativa de vida para
a população geral, o que evidencia a necessidade de maiores
investimentos e progressos no tratamento desses pacientes ().
O diagnóstico laboratorial da anemia falciforme é feito
através de eletroforese de hemoglobina, focalização
isoelétrica ou cromatografia líquida de alta performance
(HPLC). As cadeias β globínicas são detectáveis
em fase precoce da vida fetal, a partir da 10ª a 12ª semana
de gravidez, o que possibilitaria o diagnóstico pré-natal
da anemia falciforme ().
A doença falciforme manifesta-se em indivíduos homozigóticos
para a hemoglobina S e em combinação com outras hemoglobinas
anormais, o que pode resultar em doença falciforme com diversos
graus de gravidade: co-herança com um gene da hemoglobina C (SC),
um gene da β + talassemia (SAF), ou um gene da βo talassemia
(SF), em ordem decrescente de freqüência ().
Doença falciforme e infecção
As infecções são as complicações mais
freqüentes nos indivíduos com anemia falciforme ().
Observa-se, na primeira infância, uma esplenomegalia decorrente
da congestão na polpa vermelha pelo seqüestro de eritrócitos
falcizados nos cordões esplênicos e sinusóides, que
evolui com a formação de trombose e infartos, culminando
com a atrofia e fibrose do órgão. Este fenômeno, denominado
de auto-esplenectomia, ocorre geralmente até os 5 anos de idade
().
Entretanto, mesmo antes da auto-esplenectomia, a capacidade fagocítica
mediada por opsoninas e a produção de anticorpos são
afetadas em conseqüência da persistente agressão esplênica
(),
levando à asplenia funcional, que se torna permanente em torno
do sexto ao oitavo ano de vida ().
Como conseqüência da asplenia, haverá uma maior susceptibilidade
a infecções por organismos encapsulados, notadamente o Haemophilus
influenzae tipo b (Hib) e o pneumococo ().
O risco de infecção por este último em crianças
com anemia falciforme menores de 5 anos é aproximadamente 30 a
100 vezes maior que em crianças saudáveis ().
Essas infecções, acompanhadas de acidose, hipóxia
e desidratação, podem desencadear e/ou intensificar as crises
de falcização, já que favorecem a produção
de citocinas inflamatórias, aumentando, assim, a expressão
das moléculas de adesão endoteliais e a adesão das
células falciformes e dos polimorfonucleares no endotélio
vascular. Nessas condições, forma-se um círculo vicioso
perigoso para o paciente, que pode ser letal se não tratado adequadamente.
Este fato justifica a busca por profilaxia e abordagem eficazes.
Foi observado, ainda, nos pacientes com anemia falciforme, um risco 25
vezes maior de desenvolver infecções por salmonelas, especialmente
em crianças maiores e adultos ().
Abaixo de 3 anos de idade, ainda predominam as infecções
causadas pelo pneumococo e pelo Hib ().
Infecção viral e aplasia medular
Alguns tipos de vírus estão associados à crise aplástica
transitória em pacientes com anemia falciforme - com especial ênfase,
o parvovírus B19 ().
Seu principal alvo é a célula eritróide imatura.
Uma vez que os pacientes portadores de anemias hemolíticas crônicas
têm uma acentuada hiperplasia compensatória da série
eritróide, a infecção pelo parvovírus B19,
além de outros vírus, promove uma destruição
das células eritróides imaturas, com conseqüente parada
da produção de glóbulos vermelhos, levando a uma
acentuação da anemia já existente. Leucócitos
e plaquetas geralmente não são afetados, mas ocasionalmente
pode-se notar leucopenia e/ou trombocitopenia, com possível presença
de linfócitos atípicos e eosinofilia ().
A transmissão se dá através das vias aéreas
superiores, hemoderivados e transmissão vertical durante a gestação.
O período de incubação varia de 9 a 17 dias ().
Os pródromos possíveis são: febre, mal-estar, dores
e sintomas gastrointestinais e respiratórios leves. Exantema pode
ocorrer em 23% dos pacientes, sendo de difícil visualização
nos pacientes melanodermas e, portanto, na maioria dos indivíduos
com anemia falciforme. O período prodrômico é seguido
por importante queda do hematócrito e grave reticulocitopenia ().
A crise aplástica persiste por cerca de 10 a 12 dias ()
e ocorre mais comumente no inverno e na primavera, com picos de incidência
a cada 2 a 3 anos ().
Sua prevalência aumenta com a idade, variando de 2 a 10% em crianças
menores de 5 anos e de 40 a 60% em adultos maiores de 20 anos ().
Recentemente, tem sido observada a ocorrência de síndrome
nefrótica durante a infecção pelo parvovírus
B19 ou dentro de 6 semanas após a mesma. Há também
relatos de complicações cérebro-vasculares, tais
como acidente vascular encefálico concomitante ao episódio
de anemia aguda, meningite, encefalite e vasculite ().
O diagnóstico etiológico específico é realizado
através de testes sorológicos e/ou isolamento do vírus
em tecidos ou sangue. Os testes utilizados são: pesquisa de IgG
e IgM por métodos imunoenzimáticos, radioimunoensaio e imunofluorescência,
detecção do vírus por hibridização
in situ, reação em cadeia de polimerase (PCR) ou
microscopia eletrônica ().
O tratamento básico consiste em transfusão de hemácias.
A utilização de imunoglobulinas, uma boa fonte de anticorpos
neutralizantes, pode ser recomendada para pacientes imunossuprimidos graves
().
A recuperação da medula ocorre em 7 a 10 dias, e crises
recorrentes não têm sido descritas ().
Infecções bacterianas mais comuns
Os principais agentes etiológicos associados a episódios
de infecção bacteriana invasiva nos indivíduos com
anemia falciforme, em ordem decrescente de freqüência, são:
Streptococos pneumoniae, Salmonella spp, Hib, Escherichia
coli e Klebsiella spp ().
O pneumococo e o Hib incidem predominantemente em crianças até
os 5 anos de idade, sendo incomuns após esta faixa etária.
Este último agente acomete mais crianças do sexo masculino
().
A salmonela não tem qualquer predileção por faixa
etária, mas é notado um acréscimo na sua incidência
linearmente com o aumento da idade ().
A Klebsiella e a Escherichia coli incidem predominantemente
após os 10 anos de idade, principalmente após os 20 anos
().
É extremamente importante lembrar que qualquer infecção
bacteriana no indivíduo com anemia falciforme tem grande potencial
de evoluir para sepse, muitas vezes com êxito letal, se não
for identificada e tratada precocemente.
Vias aéreas
Otite média aguda pode ser comumente observada, tendo como principal
etiologia o pneumococo ().
Pneumonias por pneumococos, Hib e salmonelas são freqüentes.
Os dois primeiros agentes citados são especialmente mais prevalentes
e graves em crianças menores de 5 anos, principalmente lactentes
().
Uma causa infecciosa incluindo bactérias atípicas pode ocorrer
em qualquer idade ().
Pode ocorrer infecção secundária de áreas
enfartadas no parênquima pulmonar na síndrome torácica
aguda (),
que apresenta manifestações clínicas semelhantes
às da pneumonia, como febre, tosse, dispnéia e dor pleural.
A síndrome torácica aguda é a segunda causa mais
comum de internamentos hospitalares em todos os grupos etários
de indivíduos com anemia falciforme ().
Na síndrome torácica aguda, a utilização de
antibióticos geralmente não desencadeia uma melhora rápida,
e a evolução é freqüentemente desfavorável
().
Sistema ósteo-articular
A necrose da medula óssea, secundária ao infarto ósseo,
predispõe o paciente com anemia falciforme a complicações
como osteomielites e artrites sépticas ().
Essas complicações são mais comuns no sexo masculino
(2:1), sendo rara sua ocorrência abaixo de 1 ano de idade ().
Os achados clínicos mais comuns são dor, edema, calor,
rubor, sensibilidade local aumentada e febre (temperatura acima de 38,2
°C). Exames laboratoriais podem mostrar leucocitose (acima de 15.000/mm3)
e velocidade de hemossedimentação aumentada ().
Muitas vezes o diagnóstico diferencial entre osteomielite e infarto
ósseo é difícil (),
pois seus sinais clínicos são semelhantes. Febre alta com
calafrios e aspecto toxemiado aumentam a suspeita de osteomielite, devendo-se
manter vigilância nesses casos. Radiografias simples são
de valor relativamente limitado no diagnóstico diferencial entre
infecção ósteo-articular e infarto ósseo (),
exceto quando se observa elevação periostal na área
dolorosa, o que favorece o diagnóstico de osteomielite. Exames
de imagem mais sofisticados, como cintilografia óssea ou ressonância
magnética, têm uma maior sensibilidade no diagnóstico
precoce de osteomielite. A realização de culturas é
recomendada (sangue, aspirado ósteo-articular), e, eventualmente,
indica-se biópsia óssea da área acometida.
O agente etiológico mais freqüentemente isolado nos casos
de osteomielite na maioria das séries é a salmonela (57%),
ocorrendo também casos por S. aureus, S. pneumoniae,
H. influenzae, β-streptococcus/Klebsiella e Escherichia
coli/Enterococcus ().
Observa-se uma maior predisposição à osteomielite
por salmonela em pacientes com anemia falciforme do que na população
geral. Na osteomielite causada pela salmonela, foi documentado o freqüente
envolvimento de múltiplos locais no osso, em contraste com outras
etiologias ().
Nos casos de artrite séptica, não há indícios
de maior predisposição a determinado patógeno, embora
o estreptococo pareça ser mais prevalente ().
O tratamento consiste em irrigação e desbridamento cirúrgico
em casos selecionados, aliado a antibioticoterapia apropriada por um mínimo
de 21 dias nos casos de artrite séptica e de 40 dias nos casos
de osteomielite. A identificação precoce de sinais clínicos,
diagnóstico e instituição de tratamento agressivo
são os fatores prognósticos mais importantes para uma evolução
satisfatória ().
Sistema nervoso
A meningite nos indivíduos com anemia falciforme apresenta alta
taxa de mortalidade, além de atuar como um dos fatores precipitantes
de um acidente vascular encefálico, principalmente o isquêmico
().
Em estudo de meta-análise em países em desenvolvimento,
observou-se que a meningite bacteriana por pneumococo causou mais mortes
e seqüelas neurológicas que o Hib ou o meningococo ().
A meningite causada pelo Hib tem distribuição universal,
sendo geralmente endêmica, com predomínio nos climas temperados
e no inverno. Sua transmissão ocorre através de gotículas
e secreções nasofaríngeas, cessando 24 a 48 horas
após o início da antibioticoterapia. O período de
incubação é desconhecido, possivelmente variando
de 2 a 4 dias. Seu curso clínico é semelhante ao de outras
meningites, tornando difícil sua distinção da meningite
pneumocócica ou meningocócica. A mortalidade é maior
na faixa etária de 0 a 4 anos (em especial nos menores de 1 ano),
decaindo a partir daí ().
É importante ressaltar que a transmissibilidade pode se estabelecer
durante todo o tempo em que o microorganismo estiver presente, podendo
ser duradoura, inclusive na ausência de secreções
nasais, e os portadores do Hib predominam na mesma faixa etária
da sua incidência, o que torna os aglomerados (creches, escolas,
instituições, etc.) focos de vigilância e atenção
à saúde ().
Sistema gastrointestinal
Na gastroenterite aguda causada pela salmonela, os sintomas se iniciam
algumas horas após a ingestão de comida contaminada e se
manifestam através de náuseas, vômitos e diarréia,
evoluindo com dor abdominal, febre e calafrios ().
A doença invasiva depende do status imune do hospedeiro ().
Sepse ou osteomielite por salmonela podem advir com certa freqüência
do transporte gastrointestinal por episódios isquêmicos vaso-oclusivos
que rompem a barreira mucosa ().
Não é incomum também a gastroenterite de etiologia
pneumocócica ().
Dor abdominal no portador de doença falciforme normalmente é
atribuída a episódios de vaso-oclusão, sendo a apendicite
um evento raro nesses indivíduos, com uma incidência mais
baixa do que na população em geral ().
As bases biológicas para este achado permanecem desconhecidas.
Desde 1950, artigos têm sido publicados demonstrando que hepatite
é uma das causas de doença hepática em indivíduos
com anemia falciforme, e o vírus C foi destacado como o principal
agente etiológico de hepatite pós-transfusional. Esses indivíduos
apresentam o risco de adquirir infecção pelo vírus
da hepatite C através das hemotransfusões às quais
são submetidos (),
especialmente aqueles que receberam hemotransfusões antes do screening
sorológico para anticorpos anti-HCV nos bancos de sangue. Estudo
realizado em Pernambuco também demonstrou uma prevalência
maior de infecção pelo HCV entre os indivíduos que
receberam mais de 10 unidades de componentes sangüíneos ().
A prevalência de infecção pelo vírus da hepatite
C varia de 2 a 30% nos indivíduos com anemia falciforme, quando
na população geral é estimada em 3% ().
Sistema genito-urinário
Indivíduos com anemia falciforme são susceptíveis
a infecção do trato urinário. Há predomínio
em mulheres, e os principais agentes etiológicos são os
germes gram-negativos, especialmente a Escherichia coli, que incide
predominantemente após os 20 anos de idade, possivelmente refletindo
a atividade sexual, com maior probabilidade de infecções
do trato urinário com dano isquêmico renal ().
Há também maior incidência de infecção
do trato urinário em gestantes: aproximadamente duas vezes maior
que na população normal (),
com possibilidade de evoluir para septicemia.
Septicemia
É um risco permanente devido à redução ou
ausência de função esplênica (),
principalmente nos 6 primeiros anos de vida (),
sendo a principal causa de morte entre lactentes com anemia falciforme
().
Devemos lembrar que a sepse pode ser o evento inicial na apresentação
da anemia falciforme ainda não diagnosticada (),
uma vez que a maioria dos eventos ocorre antes dos 3 anos de idade.
Os principais agentes etiológicos, por ordem decrescente de freqüência,
são: pneumococo, Hib, Salmonella sp, Escherichia coli,
Enterobacter sp e Acinetobacter sp. Em um estudo jamaicano,
os microrganismos gram-negativos foram isolados em 50% das hemoculturas
positivas ().
A incidência de sepse por Hib tem diminuído, diferentemente
do que se verifica com o comportamento do pneumococo ().
A etiologia pneumocócica representa um maior risco nos primeiros
3 anos de vida, com pico de incidência entre 1 e 2 anos, sendo incomum
antes dos 6 meses e reduzindo-se após os 5 anos. Deve ser suspeitada
em qualquer quadro séptico severo em crianças com anemia
falciforme apresentando febre elevada. A apresentação clínica
inicial se dá através de febre, vômitos e toxemia,
ocorrendo com menor freqüência achados torácicos anormais,
meningismo, petéquias, choque e coagulação intravascular
disseminada ().
A confirmação se faz através de hemocultura.
A incidência de sepse por salmonela é muito grande na Jamaica,
sendo o organismo mais comumente isolado depois dos 6 anos de idade. Em
um estudo publicado, septicemia por salmonela não foi observada
em crianças menores de 3 anos, mas representou 30% dos casos em
crianças entre 6 e 9 anos de idade, na sua grande maioria (77%)
associados com osteomielite ().
Septicemia por salmonela tem sido associada a altas taxas de mortalidade.
Os sintomas mais comuns são: dor óssea, síndrome
torácica aguda, icterícia intensa, dor abdominal, inapetência,
vômitos e cefaléia ().
Na sepse causada pelo Hib ou pela salmonela, o paciente apresenta-se
seriamente doente, com febre alta e icterícia acentuada. A confirmação
diagnóstica se dá através da hemocultura. Tratamento
precoce deve ser instituído com ceftriaxona (100 mg/k/d, 12/12h,
endovenoso) ou, na falta desta, penicilina cristalina (100.000 a 200.000U/k/d
em dose única diária) associada a cloranfenicol (50 a 100
mg/k/d, 6/6h, endovenoso) ().
O paciente com história prévia de bacteremia tem uma maior
susceptibilidade a reincidência (),
devendo ser submetido a investigação diagnóstica
da forma mais precoce e agressiva possível. Essa susceptibilidade
está diretamente interligada à perda mais precoce da função
esplênica. O desenvolvimento de esplenomegalia clínica nos
primeiros 6 meses de vida tem se mostrado significativamente associado
a um maior risco de subseqüente sepse pelo pneumococo. A possível
importância desta perda precoce da função esplênica
é embasada por dados da Arábia Saudita, onde a concentração
de hemoglobina fetal está associada com função esplênica
mantida e uma menor incidência de sepse ().
Profilaxia
A profilaxia de complicações da própria doença
é indispensável para uma evolução o menos
desfavorável possível nesses indivíduos. Quatro são
os passos fundamentais:
- diagnóstico neonatal seguido de orientação e
programa de educação familiar através de regular
acompanhamento ambulatorial;
- profilaxia medicamentosa com penicilina;
- vacinação contra pneumococos e Hib nas idades apropriadas;
- identificação precoce e manejo apropriado dos episódios
febris, considerando-os como potenciais eventos sépticos.
O diagnóstico precoce da anemia falciforme possibilita o acompanhamento
da criança antes do surgimento da sintomatologia e suas complicações
e permite iniciar a profilaxia antibiótica desde os 3 meses de
vida, conjuntamente à vacinação contra germes encapsulados
().
Isso reduz de maneira significativa as mortes associadas a esta enfermidade,
principalmente por problemas infecciosos (de 30 para 1%) (),
além de proporcionar a chance de melhor qualidade de vida ().
Em países onde o screening neonatal para hemoglobinopatias
foi instituído, tem se demonstrado que o acompanhamento dessas
crianças em centros especializados pode reduzir a mortalidade por
infecções pneumocócicas de 40 para 10% e a mortalidade
geral de 8 para 1,8% ().
A proposta de diagnóstico neonatal das síndromes falciformes
já é bastante conhecida e teve impulso na década
de 70 nos EUA e na Jamaica, entre outros locais ().
O diagnóstico neonatal, associado a uma abordagem agressiva dos
episódios febris em lactentes, foi efetivo na prevenção
de mortes por septicemia antes da era da profilaxia com penicilina ().
Um ponto muito importante e fundamental para o adequado manejo do paciente
com anemia falciforme é um rigoroso acompanhamento ambulatorial,
o qual deve ser sempre priorizado nos serviços de saúde.
Profilaxia medicamentosa
Antipneumocócica
Tornou-se rotina desde 1986 ().
Quando iniciada precocemente, tem reduzido significativamente a incidência
de bacteremia pelo pneumococo ().
Alguns estudos relatam 84% de redução de sepses pelo pneumococo
em crianças que faziam correta profilaxia com penicilina ().
Orienta-se o seu início aos 4 meses de idade ou tão logo
se faça o diagnóstico da anemia falciforme, com manutenção
até os 4 anos ()
(alguns autores sugerem sua continuidade até os 5 anos ()).
Após esta idade, não tem sido evidenciada uma relação
custo-benefício que justifique a continuidade da profilaxia ().
Em alguns centros de atendimento, a última dose de penicilina é
dada concomitantemente à última dose de vacina antipneumocócica,
diferentemente de outros centros, que sugerem firmemente a manutenção
deste tipo de profilaxia, principalmente naquelas crianças com
episódios recorrentes de sepse por pneumococo. O Hospital de Buffalo,
em Nova Iorque, por exemplo, recomenda esta continuidade, mantendo um
esquema posológico de penicilina administrada por via oral e um
acompanhamento ambulatorial rigoroso: bimestral até os 6 meses
de idade, trimestral dos 6 meses até os 2 anos e, a partir daí,
semestralmente ().
É importante ressaltar que este tipo de profilaxia, embora necessária,
pode não ser suficiente para evitar a ocorrência de infecções
graves conseqüentes à falta de adesão ao tratamento,
surgimento de resistência pneumocócica à penicilina,
ou pela possibilidade de infecções por outros organismos
encapsulados.
A resistência do pneumococo à penicilina é um problema
crescente em todo o mundo. As taxas de resistência total ou intermediária
à penicilina vêm aumentando, conforme mostram alguns estudos
realizados em países da Europa ().
Os primeiros relatos de cepas de pneumococo penicilino-resistentes foram
publicados em 1967. Em 1974, a primeira infecção nos EUA
por uma dessas cepas se deu em um paciente com anemia falciforme. Desde
então, houve uma progressão nos casos de infecções
invasivas por essas cepas, embora sua incidência varie amplamente
conforme a localização geográfica ().
Em estudo realizado utilizando-se placebo versus penicilina, a
incidência de sepse por pneumococo foi 84% menor, e não ocorreram
mortes por esta causa no grupo que utilizou a penicilina ().
Esse estudo foi continuado com crianças maiores, mostrando uma
baixa incidência de sepse, mas sem apresentar benefícios
estatisticamente significantes na continuidade deste tipo de profilaxia
após os 5 anos de idade. Encontraram-se 4% dos pacientes colonizados
por pneumococos penicilino-resistentes, mas a profilaxia com penicilina
não foi associada a alta taxa desta colonização ().
Um total de 33% das cepas isoladas era resistente à penicilina,
com 64% destas apresentando resistência intermediária ().
Na Jamaica, organismos resistentes à penicilina são infreqüentes
().
A profilaxia com penicilina não parece aumentar a taxa de colonização
por cepas de pneumococos resistentes ().
A dificuldade em obter adesão a este tipo de profilaxia pode estar
na dificuldade do paciente em compreender a necessidade do uso contínuo
da medicação mesmo estando assintomático, sendo que,
para muitos deles, o fato desta prática prevenir restrito risco
de infecção não é aceitável ().
Em estudo realizado para avaliar a adesão do paciente a este tipo
de profilaxia, notou-se que a mesma era maior em pacientes com seguro-saúde
privado do que naqueles dependentes do sistema público de saúde.
As razões deste achado não foram esclarecidas ().
Em muitos estudos, é relatada a baixa adesão a qualquer
tipo de intervenção medicamentosa por parte de pacientes
portadores de doenças crônicas. No caso da anemia falciforme,
aliada a este motivo está a falta do imediatismo de resultados
().
O esquema aconselhado é o seguinte:
- penicilina oral na dose de 125 mg em crianças menores de 2
anos e 250 mg em maiores de 2 anos, diariamente, de 12 em 12 horas;
ou
- penicilina benzatina a cada 21 dias, na dose de 300.000 UI em crianças
com peso inferior a 10 kg, 600.000 UI naquelas com peso entre 10 e 27
kg, e 1.200.000 UI naquelas acima de 27 kg.
Aos indivíduos alérgicos à penicilina, é orientado
o uso de eritromicina na dose de 125 mg, duas vezes ao dia, diariamente,
dos 4 meses aos 3 anos, e de 250 mg, na mesma forma de administração,
dos 3 aos 4 anos de idade ().
Em recente congresso realizado na área de infectologia pediátrica,
foi sugerida a orientação aos pais de administrarem amoxicilina
na dose de 20 mg/kg/dia à criança com anemia falciforme
que apresentasse episódio febril em casa, seguindo-se imediata
procura por atendimento médico (XIII Congresso Brasileiro de Infectologia
Pediátrica, novembro de 2002, Salvador, Bahia).
O uso contínuo da penicilina não interfere na resposta imunológica
à revacinação ().
Imunizações
Vacina antipneumocócica
A cápsula polissacarídica é o principal fator de
virulência do pneumococo, e 90 sorotipos diferentes já foram
descritos. Sua prevalência varia freqüentemente com a faixa
etária e área geográfica ().
O preparo da vacina antipneumocócica é mais complexo que
o da vacina anti-Hib. Há seis sorotipos de Hib causadores de infecção
invasiva, em contraste com o pneumococo, onde há mais de 90 sorotipos
já isolados. Além disso, as vacinas conjugadas só
podem conter alguns sorotipos, devido a problemas de volume ().
Vacinas antipneumocócicas foram inicialmente licenciadas nos EUA
em 1946, mas sumiram do mercado com o advento do uso de antibióticos,
especialmente da penicilina. Mas, a despeito do uso dos antimicrobianos,
as doenças causadas pelo pneumococo mantiveram sua virulência
e altas taxas de mortalidade em todo o mundo, fazendo com que o interesse
pelas vacinas antipneumocócicas ressurgissem em 1977. Em 1983,
foi licenciada a vacina antipneumocócica 23-valente, indicada para
crianças a partir de 2 anos de idade, principalmente as asplênicas
().
Apesar das alterações imunológicas observadas em
indivíduos com anemia falciforme, estudos americanos demonstraram
que eles respondem à vacina antipneumocócica (),
diferentemente do estudo realizado por Bjornson, que relatou uma resposta
pequena à vacinação entre pacientes com anemia falciforme
().
Recente estudo realizado na cidade de São Paulo avaliou a resposta
à imunização com vacina antipneumocócica 23-valente
e relatou uma produção adequada de anticorpos, embora a
intensidade da resposta tenha sido maior em crianças acima de 6
anos. Sua eficácia em menores de 2 anos foi muito baixa ().
Antes dos 24 meses de idade, a vacina antipneumocócica 23-valente
não apresenta boa resposta, com baixa produção de
anticorpos, queda rápida dos níveis séricos e ausência
de resposta imunológica ().
Atualmente há no mercado quatro tipos de vacinas antipneumocócicas
conjugadas, de acordo com os sorotipos contidos:
- 7-valente: sorotipos 4, 6B, 9V, 14, 18C, 19F, 23F, responsáveis
por 69 a 79% dos casos de doença pneumocócica invasiva
em crianças menores de 5 anos (dados epidemiológicos europeus);
- 9-valente: adiciona à anterior os sorotipos 1 e 5, cobrindo
77 a 87% dos casos;
- 11-valente: adiciona os sorotipos 3 e 7F, cobrindo 82 a 91%;
- 23-valente: sorotipos 1, 2, 3, 4, 5, 6B, 7F, 8, 9N, 9V, 10A, 11A,
12F, 14, 15B, 17F, 18C, 19F, 19A, 20, 22F, 23F e 33F.
A resposta à vacina apresenta variações individuais,
não se mostrando homogênea para todos os indivíduos.
A vacinação confere bom grau de proteção,
mas não completo. Desse modo, recomenda-se manter a profilaxia
antibiótica com penicilina associada à imunização.
A imunização antipneumocócica parece abrandar o curso
clínico da doença invasiva, mas não altera sua taxa
de mortalidade ().
Crianças vacinadas após os 2 anos de idade apresentam boa
resposta à imunização, porém com queda rápida
de anticorpos, necessitando revacinação 5 anos após
a primeira dose ().
A Organização Mundial de Saúde recomenda revacinação
10 anos após a primeira dose, mas crianças menores de 10
anos imunodeprimidas apresentam queda mais precoce de anticorpos e devem
ser revacinadas 3 a 5 anos após a primeira dose ().
A vacina 7-valente é liberada para uso dos 2 meses aos 2 anos
(quatro doses).
É recomendada a vacina 23-valente aos 2 anos, com dose de reforço
aos 5 anos.
Atualmente, é considerada uma prioridade o desenvolvimento de
vacinas com boa proteção para uso em lactentes.
Sugere-se o seguinte esquema vacinal: vacina antipneumocócica
conjugada 7-valente aos 2, 4 e 6 meses, com dose de reforço entre
os 12-15 meses. Esta última dose pode ser realizada com a vacina
anti-pneumocócica 23-valente, o que, segundo alguns estudos, permite
títulos de anticorpos significativamente maiores. Nas crianças
acima de 7 meses não vacinadas, sugere-se o seguinte esquema: entre
7 e 11 meses, realizar três doses (0-1 mês a 1 ano). Entre
12 e 23 meses, duas doses (0-2 meses). Entre 2 e 9 anos, uma única
dose.
Vacina anti-Hib
As cepas encapsuladas do Hib são diferenciadas em seis sorotipos,
com base na estrutura antigênica da cápsula polissacarídica
().
A vacina conjugada foi desenvolvida em 1980 e provou ser segura, imunogênica
e altamente efetiva quando usada em lactentes, fato que levou a uma extensa
campanha para introduzir esta vacina no calendário obrigatório
de imunização, principalmente nos países em desenvolvimento,
onde são estimadas altas taxas de morbimortalidade pelo Hib em
crianças abaixo de 5 anos. Isso levou ao desaparecimento virtual
da doença invasiva em muitos países industrializados ().
A vacinação contra o Hib foi iniciada há cerca de
11 anos em quase todo o mundo e tem se tornado a principal medida preventiva
contra a forma clínica mais invasiva deste microorganismo, especialmente
a meningite ().
A vacinação rotineira tem a capacidade de prevenir a colonização
de portadores do Hib, diminuindo, deste modo, sua transmissão para
a população susceptível. A eficácia da vacina
é elevada, variando de 95 a 100%, mas a efetividade ainda não
atingiu 100% da população-alvo, mantendo-se entre 87 e 88%.
De acordo com as recomendações do Center for Disease
Control and Prevention (CDC), as falhas desta vacina são eventos
infrequentes ().
A incidência de doença invasiva pelo Hib tem sido drasticamente
reduzida através da vacinação ().
Sugere-se o seguinte esquema vacinal: aos 2, 4, 6 e 15 meses. Nas crianças
entre 12 e 18 meses não vacinadas, realizar duas doses com intervalo
de 2 meses.
|