Introdução
A endocardite infecciosa é definida como um processo inflamatório
do endocárdio valvar ou mural, sobre um defeito septal, ou
sobre as cordas tendíneas, como resultado de uma infecção
bacteriana, viral, fúngica, ou por micobactérias e
rickéttsias, que, na maioria das vezes, ocorre em pessoas
com anormalidades pré-existentes do sistema cardiovascular
().
Compreende cerca de 0,2% a 0,5% de todas as internações
pediátricas, e é considerada uma importante causa
de mortalidade (20%-64%) entre crianças e adolescentes, apesar
dos avanços do tratamento e profilaxia com agentes antimicrobianos.
Vários fatores contribuem para o prognóstico da doença,
como parâmetros clínicos, tipo de microorganismo e
presença de prótese valvar ().
A doença, na ausência de lesão cardíaca
prévia, é considerada rara em crianças ().
Em adultos, é freqüente em usuários de droga
intravenosa e em pessoas de 50 anos de idade ou mais ().
Em crianças, tem sido relatado aumento crescente de casos,
principalmente em recém-nacidos e lactentes jovens e, concomitantemente,
mudança do perfil bacteriano, com maior prevalência
do Staphylococcus aureus e de outras bactérias, antes
menos freqüentemente identificadas na endocardite infecciosa
().
Nesses pacientes, a endocardite é aguda, geralmente associada
a defeitos cardíacos congênitos. Os casos de endocardite
subaguda clássica, causada pelo Streptococcus viridans
têm diminuído, devido à redução
da prevalência da febre reumática e suas seqüelas
cardíacas. Além da redução de casos
de febre reumática, a melhoria no atendimento de recém-nascidos
de alto risco, o aumento dos procedimentos invasivos e as intervenções
cirúrgicas precoces nas cardiopatias congênitas têm
contribuído para o aumento do número de expostos ao
risco de endocardite infecciosa nesse grupo etário ().
Apesar de não ser muito freqüente, a doença é
grave, considerada como importante causa de morbidade e mortalidade
em criança, e o sucesso terapêutico depende de diagnóstico
precoce e preciso. Apesar de autores terem descrito vários
critérios baseados em parâmetros clínicos e
patológicos, os critérios para diagnóstico
da EI mais aceitos atualmente são os critérios de
Duke, que incluem os parâmetros do exame ecocardiográfico
()
(Tabela 1). O valor desse exame tem sido questionado, mas sua validade
foi confirmada quando utiliza-se ecocardiograma bidimensional com
Doppler colorido, e se o cardiologista for experiente na interpretação
dos resultados. Com a publicação dos novos critérios
para o diagnóstico da endocardite infecciosa do serviço
de endocardite infecciosa da Universidade de Duke, atualmente considera-se
que os dois principais critérios para diagnóstico
de certeza de endocardite infecciosa são hemoculturas múltiplas
positivas para germes típicos e evidência, ao ecocardiograma,
de lesões miocárdicas e/ou vegetações
em válvulas cardíacas, abcessos intramiocárdios
ou deiscência parcial recente de uma valva protética
().
Tabela 1 -
Critérios de Duke para o diagnóstico da endocardite infecciosa
()
O uso de ecocardiografia em adultos tem confirmado sua utilidade,
especialmente com o ecocardiograma transesofágico, pois este
oferece uma grande ampliação de campos para se observar
imagens. Em crianças, o exame de ecocardiografia transesofágica
tem uso limitado, razão pela qual utiliza-se rotineiramente
o ecocardiograma transtorácico ().
Como a endocardite infecciosa em crianças é uma entidade
heterogênea, seu manejo requer também cuidadosos critérios
baseados nas evidências clínicas e laboratoriais, além
dos critérios ecocardiográficos ().
Como os relatos sobre o ecocardiograma transtorácico em endocardite
infecciosa de crianças têm mostrado resultados variáveis
na sua sensibilidade diagnóstica, nos propusemos a descrever
uma série de 28 casos de endocardite infecciosa atendidas
no Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória, em Vitória,
Espírito Santo, com ênfase nos achados clínicos,
laboratoriais e do ecocardiograma transtorácico, para verificar
as características da doença no nosso meio.
Pacientes e métodos
Foram incluídas todas as crianças com idade abaixo
de 18 anos, com diagnóstico de endocardite infecciosa, internadas
no serviço de infectologia do Hospital Infantil Nossa Senhora
da Glória, Vitória, Espírito Santo, no período
de janeiro de 1993 a dezembro de 2001. Os critérios para
diagnóstico de endocardite infecciosa foram os do Duke Endocarditis
Service (Duke University, Durham, North Carolina - USA) (),
no qual um dos principais parâmetros diagnósticos é
a demonstração ecocardiográfica de evidência
de lesão miocárdica e/ou vegetações
em válvulas cardíacas, abcessos intramiocárdicos
ou deiscência parcial recente de uma valva protética.
O Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória é um hospital
público estadual, e os serviços de infectologia e
de cardiologia pediátricas são referências para
o Estado do Espírito Santo, atendendo também pacientes
do sul da Bahia e leste de Minas Gerais.
Através de protocolo específico, preenchido pelos
médicos-residentes e acadêmicos do serviço de
infectologia, e revisados pelas médicas da equipe, foram
anotadas as idades, sexo, achados clínicos e laboratoriais
e os resultados da ecocardiografia transtorácica das 28 crianças
que preenchiam os critérios clínicos e laboratoriais
de endocardite infecciosa. Todos os exames laboratoriais foram realizados
no laboratório de rotina do hospital. Em todos os casos,
as hemoculturas foram realizadas com coleta do sangue (três
amostras), sob condições assépticas e com inoculação
em meios aeróbicos e anaeróbicos, incubados a uma
temperatura de 37ºC e testados com sistema automatizado Vitec
System ®(Biolab).
O estudo foi submetido e teve a aprovação do comitê
de ética e pesquisa do Hospital Infantil Nossa Senhora da
Glória.
Análise estatística
Foi feita com a utilização do programa estatístico
"SPSS-CDC Inc for Windows" (Statistical Package for
the Social Sciences of Centers Diseases Control - USA. Release 8.0
- 1998). A comparação das médias foi feita
através do teste t pareado ou pelo teste de Wilcoxon.
As proporções foram comparadas pelo teste de qui-quadrado,
com correção de Yates, ou pelo teste exato de Fisher.
Resultados
Os dados sobre idade, sexo, características clínicas,
bacteriológicas e os principais achados do ecocardiograma
estão na Tabela 2. Das cardiopatias prévias observadas,
12 eram cardiopatias congênitas (85,7%), e duas cardiopatias
reumáticas (14,3%). Os achados clínicos que mais freqüentemente
levaram à suspeita de endocardite infecciosa e induziram
à realização de ecocardiograma foram: febre
prolongada (100%), sopro cardíaco (67,9%), dispnéia
(57,1%), hepatomegalia (57,1%), fenômenos vasculares (32,2%),
incluindo pequenas lesões eritematosas, ou hemorrágicas
indolores nas palmas de mãos e plantas dos pés (lesões
de Janeway), esplenomegalia (28,6%) e pequenos nódulos intradérmicos
dolorosos nas polpas dos dedos (nódulos de Osler, 7,1%).
Tabela 2 -
Principais dados demográficos, clínicos, ecocardiográficos e laboratoriais observados em 28 casos de endocardite infecciosa, no HINSG, no período de 1993 a 2001
A hemocultura foi positiva em 16 (57,1%) dos 28 casos. O Staphylococcus
aureus adquirido na comunidade foi o germe mais freqüentemente
isolado (9/16 - 56,2%). Houve diferença estatisticamente
significativa na freqüência do tipo de germe isolado
entre as crianças abaixo ou acima de 24 meses de idade: Staphylococcus
aureus foi encontrado nos oito casos de crianças acima
de 24 meses, sem lesão cardíaca prévia, e em
apenas um caso no grupo com idade inferior. As outras sete crianças
que tiveram hemoculturas positivas tinham idade inferior a 24 meses,
e os microorganismos isolados foram: Streptococcus viridans
em dois casos (12,5%), Enterobacter sp em quatro casos (25,5%)
e Candida tropicalis em um caso (6,2%).
Houve persistência da febre, apesar do tratamento antimicrobiano,
de 2,5 a 30 dias, mediana de 18,0 dias. O leucograma da internação
mostrou ampla variação dos valores do número
total de leucócitos (valor médio de 11.657+
7.085 mm3), mas com evidente predomínio de neutrófilos
jovens em todos os casos, se comparadas as médias dos valores
dos mesmos à internação e no dia da alta hospitalar
(p < 0,000) (Tabela 3). O ecocardiograma transtorácico
evidenciou vegetações endocárdicas em todos
os casos, especialmente nas válvulas tricúspide (25,0%)
e mitral (25,0%) e nas bordas de comunicação interventricular
(28,6%) (Figura 1). Treze (46,4%) crianças apresentaram sepse
concomitante, e três (10,7%) desenvolveram infecção
hospitalar. Ocorreu um óbito (3,6% dos casos).
Tabela 3 -
Comparação dos valores da hemoglobina, leucócitos e neutrófilos em bastões em 28 casos de endocardite infecciosa, observados na internação e no dia da alta hospitalar, HINSG,1993-2001
Figura 1 -
Localização das lesões observadas no ecocardiograma, em 28 casos de endocardite infecciosa
Discussão
Tem sido relatado por vários centros cardiológicos
pediátricos a observação de aumento dos casos
de endocardite infecciosa, principalmente entre crianças
abaixo de dois anos de idade, em decorrência do aumento da
sobrevida de crianças submetidas a cirurgias de cardiopatias
complexas, devido à melhor assistência prestada e às
unidades de terapia intensiva ().
Considerando que, em pediatria, a endocardite infecciosa é
uma entidade heterogênea, devemos observar todos os possíveis
critérios, desde achados laboratoriais, ecocardiográficos
e que não excluam os já relatados como critérios
clínicos definidores da doença (),
somando todos os esforços na tentativa de um diagnóstico
de urgência e de certeza, para um tratamento adequado e precoce,
reduzindo, assim, a mortalidade de crianças com endocardite.
Publicações recentes demonstram mudanças significativas
em endocardites infecciosas pediátricas, modificações
de prevalência da distribuição de idades e dos
microorganismos envolvidos como causadores da doença ().
Nossos resultados, semelhantes ao relatado na literatura, demonstraram
mudança do perfil epidemiológico da endocardite infecciosa
também no nosso meio, já que 50% dos casos ocorreram
em recém-nascidos e lactentes, e o Staphylococcus aureus
foi freqüentemente isolado nas hemoculturas positivas. Ainda
que a hemocultura tenha sido positiva em apenas 57,1% dos casos,
os resultados reforçam a idéia da alta prevalência
de S. aureus como agente etiológico da endocardite
infecciosa aguda no nosso meio. Por outro lado, não temos
uma explicação adequada para a baixa freqüência
de hemoculturas positivas nessa série de casos, tendo em
vista que as coletas de sangue foram realizadas de maneira aparentemente
adequada. É possível que o uso prévio de antibióticos
seja o principal fator, já que muitos pacientes chegaram
ao Hospital Infantil transferidos de outras unidades de saúde.
O papel do ecocardiograma transtorácico como meio diagnóstico
em crianças com suspeita clínica de endocardite infecciosa
ainda gera discussões, sendo assunto controverso entre vários
autores ().
Alguns autores o têm considerado de baixa sensibilidade como
método para diagnóstico de EI em pacientes com poucos
critérios clínicos da doença (),
porém outros avaliam que o uso da ecocardiografia na avaliação
de criança com suspeita clínica de endocardite tem
ampla aplicação, principalmente por que, em pediatria,
o eco transtorácico oferece excelente campo ().
Neste estudo, alteração característica ao exame
foi um dos critérios de inclusão. No entanto, é
importante lembrar que casos com ecocardiograma transtorácico
negativo e que não apresentavam todos os critérios
para diagnóstico de endocardite infecciosa poderiam ter lesões
de endocardite infecciosa, ainda sem evidência, e foram tratados
como sepse, sendo excluídos do grupo de endocardite infecciosa.
A microbiologia das endocardites infecciosas em crianças
tem mudado consideravelmente, conforme relato de alguns autores,
com o decréscimo das infecções devido ao Streptococcus
viridans, com surgimento de novos agentes etiológicos,
incomuns em décadas passadas, e como fator importante desta
mudança está a maior sobrevida de crianças
com cardiopatia congênita, e também o aumento da incidência
de infecções estafilocócicas ().
Este fato também foi por nós observado, e os resultados
demonstraram que endocardite infecciosa foi freqüente entre
crianças abaixo de dois anos de idade e naquelas com cardiopatias
congênitas. Demonstraram também que o Staphylococcus
aureus, de origem comunitária, foi freqüentemente
isolado como microorganismo infectante em crianças sem lesões
cardíacas prévias.
Agradecimentos
À Dra. Alba Lília de Almeida Leite, médica
pediatra do serviço de infectologia do Hospital Infantil
Nossa Senhora da Glória, pelo auxílio no acompanhamento
dos casos, e ao Dr. Fausto Edmundo Lima Pereira, Professor Doutor
do Núcleo de Doenças Infecciosas da Universidade Federal
do Espírito Santo, pelo auxílio na revisão
final do texto e pelo incentivo contínuo à pesquisa
e produção científica.
Aos funcionários do serviço de arquivamento de prontuários
do HINSG, por sua dedicação.
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