Introdução
O aleitamento materno, além dos benefícios nutricionais,
imunológicos, emocionais e econômico-sociais, amplamente
divulgados na literatura (),
também tem efeitos positivos na saúde fonoaudiológica,
uma vez que está relacionado ao crescimento e desenvolvimento
craniofacial e motor-oral do recém-nascido (RN) ().
A literatura tem apontado a importância da sucção
durante o aleitamento natural, pois promove o desenvolvimento adequado
dos órgãos fonoarticulatórios (OFAs) quanto
à mobilidade, força, postura, e o desenvolvimento
das funções de respiração, mastigação,
deglutição e articulação dos sons da
fala ().
Desta forma, reduz a presença de maus hábitos orais
e de várias patologias fonoaudiológicas ().
Fisiopatologia da sucção Nos primeiros meses
de vida, o desenvolvimento motor-oral ocorre através dos movimentos realizados
pelos OFAs (lábios, língua, mandíbula, maxila, bochechas,
palato mole, palato duro, soalho da boca, musculatura oral e arcadas dentárias)
durante a função de sucção. Mecanismo
de sucção Através da sucção na
mama, nos primeiros meses de vida, o RN poderá desenvolver adequadamente
os OFAs e as funções exercidas por eles.
Para cumprir este designo, o RN deve sugar de maneira harmônica,
com ritmo, força e sustentação (),
o que inclui adequação nos seguintes aspectos: reflexo
de busca e de sucção, vedamento labial, movimentação
de língua e mandíbula, coordenação sucção-deglutição-respiração
e ritmo de sucção, ou seja, eclosões de sucção
alternadas com pausas. Esses movimentos permitem uma variação
na pressão intra-oral, fundamentais na extração
e na condução do leite ().
O mecanismo de sucção inicia-se com o reflexo de procura.
Esse reflexo é um precursor para a pega correta, pois, quando
os lábios ou as bochechas são estimulados, a criança
move sua face em direção ao estímulo, ocorre
abertura da boca e protrusão da língua ().
A pega adequada da aréola e do mamilo é essencial
para a movimentação correta das estruturas orais durante
a mamada, e o lábio inferior deve estar evertido, possibilitando
que a língua avance até a linha da gengiva ().
Quando o RN suga apenas o mamilo, ocorre sucção ineficaz
e maior possibilidade de rachadura mamilar ().
A partir do momento em que ocorre a pega, o reflexo de sucção
é desencadeado e iniciam-se os movimentos de língua
e mandíbula. A língua tem a função de
realizar o vedamento anterior (aderida ao redor da aréola)
e posterior (contra o palato mole e a faringe), ordenhar a aréola,
variar o volume da cavidade oral e realizar a propulsão do
bolo alimentar ().
Tem uma participação ativa durante a sucção,
realizando os movimentos de deslocamento ântero-posterior,
acanulamento (bordas laterais da língua aderidas ao palato,
formando um sulco na sua porção medial) e movimento
peristáltico (elevação da porção
medial da língua para a porção lateral e elevação
de seu dorso conduzindo o leite à faringe).
A mandíbula oferece uma base estável para os movimentos
da língua, auxilia na criação da pressão
intra-oral ()
e realiza movimentação vertical e horizontal. Este
último movimento comprime a aréola, trazendo, como
conseqüência, a liberação de leite ().
Nos primeiros 4-6 meses de vida do RN, não há dissociação
entre os movimentos da língua e mandíbula, sendo que
essas estruturas realizam o movimento em conjunto ().
Os movimentos de língua e mandíbula são sincrônicos;
além disso, lábios, mandíbula, bochechas e
faringe participam da sucção ().
Inicialmente, quando a mandíbula se eleva, a ponta e o dorso
da língua movem-se para cima, comprimindo mamilo e aréola
contra o palato, de modo que a parte anterior da língua adere
ao mamilo, sem deixar espaço vazio entre língua, palato
duro e superfície oral, enquanto a parte posterior realiza
o selamento com o palato mole e com a faringe28,29. Nessa etapa
do movimento, a língua encontra-se plana, e forma-se um sistema
oclusivo com o palato mole ().
Quando a mandíbula se move para baixo, a língua se
acanula, desencadeando uma rápida ampliação
da cavidade oral, resultando em pressão negativa, que auxilia
na extração do leite. Dessa forma, o leite passa a
ocupar o espaço entre o dorso da língua e o palato
().
Logo após o acanulamento, a língua inicia a movimentação
peristáltica, na qual ocorre elevação da mandíbula,
elevação da parte medial e do dorso da língua().
Esses movimentos, acanulamento e peristaltismo, repetem-se, exercendo
sucessivas pressões positivas e negativas na cavidade oral
().
Desenvolvimento motor-oral
A sucção necessária ao aleitamento materno
faz com que ocorra o desenvolvimento motor-oral adequado, promovendo
o estabelecimento correto das funções realizadas pelos
OFAs.
O RN apresenta algumas características orais que facilitam
a amamentação. Elas correspondem à presença
de depósito de tecido gorduroso localizado nas bochechas
(sucking pads), pequeno espaço intra-oral, retração
da mandíbula (permitindo que a língua preencha toda
a cavidade oral e realize o movimento de extensão-retração),
não dissociação entre os movimentos de língua
e mandíbula, proximidade palato/epiglote e respiração
nasal. Através do movimento de sucção, as estruturas
se desenvolvem, de modo que ocorre a absorção das
sucking pads, o crescimento da mandíbula e, conseqüentemente,
o aumento do espaço intra-oral, com maior possibilidade de
movimentação da língua, que passa a alternar
o movimento ântero-posterior com o movimento de elevação
e rebaixamento, e maior dissociação dos movimentos
de língua, lábios e mandíbula ().
Carvalho36 aponta que, ao sugar o seio materno, a criança
estabelece o padrão adequado de respiração
nasal e postura correta da língua. Considera que durante
a sucção no seio materno, os músculos envolvidos
estão sendo adequadamente estimulados, aumentando o tônus
e promovendo a postura correta para futuramente exercer a função
de mastigação.
Além desses aspectos, ressalta-se que o desenvolvimento motor-oral
reflete no desenvolvimento craniofacial, no crescimento ósseo
e na dentição. Subtelny ()
destaca que o formato da arcada dentária é influenciado
por forças exercidas nos dentes através dos músculos
da língua, lábios e bochechas. Para Garliner (),
o movimento dos dentes sofre influências dos tecidos moles,
de modo que um desequilíbrio pode gerar uma má oclusão.
Bianchini ()
destaca que o tecido ósseo é influenciado por todos
os tecidos moles nos quais está inserido durante o crescimento.
Os dentes e demais estruturas sofrem pressões de forças
provenientes da musculatura da face e da língua durante as
funções de sucção, mastigação,
deglutição, respiração e articulação
dos sons, indicando estreita relação entre o desenvolvimento
da dentição e a atividade muscular. Estas forças
musculares, quando adequadas, promovem uma ação modeladora;
entretanto, em condições inadequadas, podem conduzir
a alterações anatômico-funcionais indesejáveis
().
Bönecker et al. ()
destacam que, entre os neonatos, o ramo mandibular é curto
verticalmente, e a eminência mentoniana está incompleta.
A estimulação durante a amamentação
e, posteriormente, a mastigação, levam ao crescimento
mandibular adequado, estabelecendo uma relação harmônica
com a maxila.
O desenvolvimento motor-oral adequado também influencia a
evolução nutricional do RN, permitindo a adequada
transição alimentar, de modo que a criança
tenha condições de receber os alimentos certos na
idade adequada (),
garantindo que a mobilidade e a força da musculatura possam
evoluir adequadamente ().
Conseqüências do desmame precoce O desmame
precoce pode levar à ruptura do desenvolvimento motor-oral adequado, provocando
alterações na postura e força dos OFAs e prejudicando as
funções de mastigação, deglutição, respiração
e articulação dos sons da fala. A falta da sucção
fisiológica ao peito pode interferir no desenvolvimento motor-oral, possibilitando
a instalação de má oclusão, respiração
oral e alteração motora-oral.
Straub ()
aponta que o aleitamento artificial interfere na realização
das funções de mastigação, sucção
e deglutição e pode levar à presença
de alterações na musculatura orofacial, na postura
de repouso dos lábios e da língua, alterações
na formação da arcada dentária e alterações
no palato.
Davis e Bell ()
verificaram, num estudo longitudinal realizado com 108 crianças,
a existência de associação significativa entre
crianças que receberam mamadeira e a presença de má
oclusão ântero-posterior, frisando que o aleitamento
materno diminui o risco desse problema.
Carvalho ()
enfatiza que somente a sucção no peito materno promove
a atividade muscular correta. A mamadeira propicia o trabalho apenas
dos músculos bucinadores e do orbicular da boca, deixando
de estimular outros músculos, tais como pterigóideo
lateral, pterigóideo medial, masséter, temporal, digástrico,
genio-hióideo e milo-hióideo. O excessivo trabalho
muscular dos orbiculares pode influenciar no crescimento craniofacial,
levando a arcadas estreitas e falta de espaço para dentes
e língua. Induz, ainda, disfunções na mastigação,
deglutição e articulação dos sons da
fala, conduzindo a alterações de mordida e má
oclusões. Também a sucção do bico de
borracha não requer os movimentos de protrusão e retração
da mandíbula, que são importantes para o correto crescimento
mandibular.
Alguns autores ()
destacam que, durante a sucção no seio materno, o
RN exercita melhor a musculatura facial. Além disto, encontraram
que, em pacientes de ambulatório com um período de
aleitamento materno inadequado ou inexistente, 33% apresentavam
alteração na deglutição e 34%, alterações
fonoarticulatórias. Na alimentação com mamadeira,
o lactente recebe pouca estimulação motora-oral, ocorrendo
flacidez da musculatura perioral e da língua, o que conduz
à instabilidade na deglutição. Freqüentemente
há deformação dentofacial, ocasionando mordida
aberta anterior ou lateral e distúrbios respiratórios.
Assim como a mamadeira, os hábitos orais refletem diretamente
no desenvolvimento motor-oral, craniofacial e no crescimento ósseo.
A presença de hábitos orais afeta o sucesso do aleitamento
materno, podendo trazer, como conseqüência, o desmame
precoce ou vice-versa, ou seja, com o desmame precoce a criança
não supre suas necessidades de sucção e acaba
adquirindo hábitos de sucção não-nutritiva
(SNN), dentre eles, a sucção digital e o uso de chupeta,
decorrendo em alterações na oclusão dentária
().
Pesquisas mostram uma relação direta entre o uso de
mamadeira e a presença de hábitos orais. De modo que
nas crianças alimentadas com mamadeira, a freqüência
de hábitos de sucção indesejáveis é
maior, sendo que após o desmame, há a tendência
do estabelecimento da sucção digital ou da chupeta
().
Uma pesquisa realizada com 214 crianças demonstrou que, dentre
as crianças que usaram chupeta, 31% foram alimentadas exclusivamente
com mamadeira. Por outro lado, das crianças que não
usaram chupeta, 58,8% receberam aleitamento natural por no mínimo
3 meses. Já entre as crianças que apresentaram sucção
digital, foi observado resultado diferente, dado que 20,6% receberam
aleitamento natural por 3 meses ou mais, e 13,1% foram amamentadas
artificialmente ().
Outra pesquisa mostrou que crianças amamentadas no peito
materno por no mínimo 6 meses apresentaram menor freqüência
de hábitos orais, já as crianças que receberam
mamadeira por mais de um ano apresentaram 10 vezes mais risco de
estabelecer hábitos orais ().
Ferreira e Toledo (),
em um estudo realizado com 427 crianças entre 3 e 6 anos
de idade, mostraram que quanto mais prolongado o aleitamento materno,
menor a ocorrência de hábitos orais nocivos, hábitos
de sucção, respiração oral e bruxismo.
Leite et al. ()
descrevem que crianças amamentadas ao peito têm menores
chances de adquirir hábitos de sucção não-nutritivos,
comumente observados em crianças que não receberam
aleitamento materno.
Um estudo recente, realizado em 2001, com 150 crianças com
idades entre 1 ano e 7 anos, constatou que as crianças amamentadas
exclusivamente no peito por no mínimo 6 meses, em sua maioria,
não desenvolveram hábitos de sucção.
Porém, aquelas que o fizeram mantiveram os hábitos
por um período mais curto, se comparadas com as crianças
que não foram amamentadas ().
Má
oclusão Este problema parece ser menos freqüente na criança
que recebeu o aleitamento materno, uma vez que o desenvolvimento dental e da oclusão
pode relacionar-se ao modo de sucção. No entanto, como citado anteriormente,
a ação da musculatura orofacial no repouso, nas funções
de mastigação, deglutição, respiração
e articulação dos sons, pode ocorrer de forma inadequada, conduzindo
à má oclusão.
Para Garliner (),
a má oclusão dental está relacionada a um desequilíbrio
motor-oral, muitas vezes advindo do uso da mamadeira e de sucção
não-nutritiva. A seguir, serão mencionadas pesquisas
que mostram as relações entre esses aspectos.
Labbok e Hendershop ()
estudaram a influência do aleitamento materno em relação
à má oclusão em crianças e adolescentes,
comparando três grupos: amamentados por 6 meses ou mais, amamentados
por menos de 6 meses e com uso exclusivo de mamadeira. Concluíram
que o aleitamento materno oferece proteção contra
a má oclusão, porém, apenas quando a duração
do aleitamento é de 6 meses ou mais. Meyers e Hertzberg54
também observaram maior indicação de tratamento
ortodôntico com o aumento da exposição à
mamadeira.
Degano e Degano ()
relatam uma menor incidência e gravidade de má oclusão
em crianças amamentadas no seio materno, se comparadas com
as que receberam alimentação artificial.
Leite et al. ()
verificaram maior freqüência de mordidas abertas ou cruzadas
entre as crianças que iniciaram precocemente o uso de mamadeira,
mesmo na alimentação mista.
Algumas pesquisas apontam que a má oclusão advém
da presença de hábitos orais, que, por sua vez, pode ser conseqüência
do uso de mamadeira. Dentre elas, tem-se um estudo realizado na Finlândia,
com 1.018 crianças, que mostrou que a introdução precoce
da mamadeira acompanhou-se do uso prolongado de chupeta, mordida aberta e mordida
cruzada56.
Fagundes e Leite (),
em uma revisão da literatura sobre amamentação
e má oclusão, concluíram que a instalação
da mordida aberta anterior está, em certo grau, relacionada
ao aleitamento artificial, sendo que o aleitamento misto ou artificial
pode levar ao estabelecimento de hábitos orais deletérios.
Os hábitos orais deletérios comumente observados são
a sucção de chupeta e a sucção digital,
sendo que desempenham papel importante na etiologia da má
oclusão. A sucção não-nutritiva está
fortemente associada com a instalação de má
oclusão, em especial à mordida cruzada posterior,
à mordida aberta anterior e à sobressaliência
().
Vale ressaltar que os desvios na forma dos arcos dentários
são também determinados pela intensidade, força
e duração do hábito ().
Ogaard et al. (),
num estudo retrospectivo com 445 crianças, verificaram que
o uso de chupeta leva à mordida cruzada. Além disto,
mostram que o uso de chupeta por dois anos produz alteração
significante na maxila, e o uso por três anos produz alteração
na mandíbula.
Alguns autores apontam a sucção digital como um dos
fatores etiológicos da mordida aberta ().
Tomé et al. ()
apontam que os hábitos orais nocivos podem determinar desvios
na morfologia dentoalveolar.
Fayyat ()
realizou uma pesquisa com 106 crianças com idade entre quatro
e seis anos e concluiu que, dos maus hábitos orais, a sucção
digital parece ser o que mais interfere no aparecimento da mordida
aberta.
Respiração
oral O padrão correto de respiração pode sofrer
influências negativas do desmame precoce. O lactente com aleitamento materno
mantém a postura de repouso de lábios ocluídos e respiração
nasal. Quando ocorre o desmame precoce, a postura de lábios entreabertos
do bebê é mais comum, facilitando a respiração oral.
Leite et al. (),
observando 100 crianças com idade entre 2 e 11 anos, verificaram
que as que receberam mamadeira exibiram 40% a mais de respiração
oral.
A criança que recebe aleitamento natural nos primeiros meses
de vida tem maior possibilidade de ser um respirador nasal, assim
como a falta de amamentação natural pode ser um dos
fatores que contribuem para o surgimento da respiração
oral ou oronasal ().
Alteração
motora-oral A alteração motora-oral compromete as funções
de respiração, mastigação e deglutição,
podendo estar associada a outros problemas. Esta alteração pode
decorrer do uso de mamadeiras e dos hábitos de sucção não-nutritiva,
provocando modificações na respiração e má
oclusão.
A Associação Americana da Fonoaudiologia (ASHA) ()
define esta alteração como distúrbio miofuncional
oral, que inclui anteriorização anormal da língua,
incompetência labial, podendo incluir alterações
fonoarticulatórias.
Como aponta Junqueira (),
a amamentação promove estímulos adequados à
musculatura da língua, favorecendo o fortalecimento da mesma
e a conseqüente produção correta dos sons da
fala, uma vez que alterações da fala podem ser decorrentes
do mau funcionamento das estruturas orais.
Barbosa e Schnonberger ()
verificaram, entre crianças não amamentadas ou desmamadas
precocemente, que 34% apresentaram alterações fonoarticulatórias
e 33%, alteração na deglutição.
Num estudo com recém-nascidos, Cattoni et al. ()
verificaram que o aleitamento natural exclusivo favorece a sucção
normal, e o aleitamento misto induz alterações na
sucção, que podem levar à ineficiência
do padrão motor-oral da criança.
Além do desmame precoce, demonstrou-se que outros fatores
podem interferir no estabelecimento de padrões motores-orais
e da oclusão dentária (),
como, por exemplo, os genéticos, que são menos influenciáveis
pelo trabalho do profissional de saúde, e os ambientais.
Conclusões
Tendo em mente o fato de que o desmame precoce traz conseqüências
no desenvolvimento motor-oral, na oclusão, na respiração
e nos aspectos motores-orais da criança, ressalta-se a importância
do aleitamento materno. O incentivo a essa prática e o adequado padrão
de sucção é a base para a prevenção de alterações
fonoaudiológicas no que se refere ao sistema motor-oral. |