Introdução
A doença de Addison é a causa mais comum de insuficiência
adrenal primária crônica, sendo, na atualidade, mais
freqüentemente causada por destruição auto-imune
progressiva do córtex adrenal (adrenalite auto-imune) e tendo
uma prevalência de 39 a 60 casos por milhão na população
geral(,).
A maioria dos sinais e sintomas de insuficiência adrenal
são inespecíficos e costumam manifestar-se de forma
insidiosa(,).
A hiponatremia é um achado laboratorial freqüente de
insuficiência adrenal e, quando de instalação
rápida e severidade suficiente, pode causar convulsões
e coma. As causas de hiponatremia são variadas e, no seu
diagnóstico diferencial, deve levar-se em conta a volemia
e a natriurese dos pacientes. A hiponatremia da insuficiência
adrenal cursa com hipovolemia e hipernatriurese().
A crise adrenal aguda é mais freqüentemente desencadeada
por infecção. Não é comum o diagnóstico
da doença de Addison ser feito através de apresentação
na forma de coma por hiponatremia severa.
O autor descreve um caso de doença de Addison, diagnosticado
através de crise adrenal aguda e coma hiponatrêmico.
Em razão da história pregressa e do grau acentuado
de desnutrição, é provável que a insuficiência
adrenal tenha se instalado há muito tempo. Foi feita uma
breve revisão da literatura e não foram encontrados,
nas bases de dados pesquisadas, relatos de outros casos de doença
de Addison com esta forma de apresentação. Discute-se,
também, a importância da valorização
da sintomatologia e do diagnóstico precoce.
Relato do caso
Menino de 9 anos, branco, pais agricultores, procedentes do meio
rural de pequena cidade da região do vale do Taquari, no
interior do RS. Foi admitido na UTIP do Hospital Bruno Born (Lajeado,
RS) por crise convulsiva seguida de coma desde a noite anterior
à internação. Nasceu de parto vaginal, normal,
a termo, pesando 2.000g e sem intercorrências neonatais. Pais
e irmã normais.
Há aproximadamente 4 anos, iniciou com episódios
freqüentes de vômitos e pneumonias de repetição.
Anorexia, astenia, adinamia importantes e emagrecimento acentuado,
ficando muitas vezes até 15 dias sem forças para levantar-se
da cama. Alto grau de absenteísmo escolar, com rendimento
muito baixo no aprendizado. Relato de extrema dificuldade para tolerar
baixas temperaturas ambientais. Trazia resultados de investigações
realizadas em dois Hospitais Universitários na capital do
estado, nos últimos 3 anos, que concluíram por refluxo
gastroesofágico e bronquite crônica. Veio transferido
do Hospital de sua cidade, onde estava internado nos últimos
25 dias, recebendo medicação antibiótica endovenosa
para tratamento de pneumonia.
Exame físico: peso de 16 Kg (<P3), estatura de 1,0m (<P3),
afebril, desidratado de I grau, aspecto de desnutrição
severa e em coma com hiper-extensão dos membros, sem rigidez
de nuca e com pupilas isocóricas e reagentes à luz.
ucosas coradas e pele escura. Ausculta cardíaca normal e
pulmonar com diminuição de murmúrio vesicular
à esquerda. Sem anormalidades ao exame abdominal. Genitália
masculina com testículos de tamanho normal para a idade.
Extremidades frias, pulsos femurais simétricos e amplos.
Exames laboratoriais: hemograma com hemoglobina de 11,5 g/dl, hematócrito
de 35%, com 8700 leucócitos/dl com 1% de eosinófilos.
Gasometria arterial com pH-7,23 e bicarbonato de 24 mEq/l. Sódio
sérico de 102 mEq/l, potássio sérico de 5,1
mEq/l, Ca iônico sérico de 1,02 mMol/l, glicemia de
186 mg/dl, Uréia plasmática de 16 mg/dl, Creatinina
plasmática de 0,8 mg/dl, sódio urinário de
74 mEq/l e potássio urinário de24,7 mEq/l (amostra
isolada).
Rx de tórax com consolidação parenquimatosa
extensa à esquerda.
Foi iniciado tratamento antibiótico com ampicilina EV. A
correção inicial rápida do sódio sérico
foi feita com NaCl a 3% em 6 horas e foi calculada correção
lenta para 125 mEq/l em 48 horas (este valor foi atingido apenas
no 5º dia de internação). A tabela I mostra a
evolução dos valores do sódio e potássio
séricos.
Tabela 1 -
Evolução dos valores de sódio e potássio
séricos
Em função da desnutrição acentuada,
hiponatremia severa com sódio urinário alto e pele
escura, foi feita hipótese de doença de Addison e
solicitada dosagem de cortisol sérico. O paciente saiu do
coma logo após ter atingido natremia acima de 110 mEq/l e
começou a ser realimentado progressivamente. Mantinha tendência
constante à hiponatremia. No segundo dia de internação
foi recebido o resultado do cortisol sérico: < que 1,2
mcg/dl às 8h e < que 1 mcg/dl às 16h (valores de
referência em mcg/dl: 8h = 5-23; 16h = 3-15). As dosagens
de ACTH e anticorpos antiadrenais foram de 2900 pg/ml (normal até
46 pg/ml) e < 1: 2 (normal < 1: 2) respectivamente.
Rx e tomografia computadorizada do abdome mostraram adrenais normais
e sem sinais de calcificações.
Com esses dados, confirmou-se a hipótese inicial de crise
adrenal aguda desencadeada por pneumonia e secundária à
doença de Addison. Iniciou-se reposição hormonal
com hidrocortisona na dose de 15 mg/m² via oral (2/3 às
8h e 1/3 entre 16h e 18h), havendo normalização definitiva
do sódio sérico.
O paciente recebeu alta hospitalar 14 dias após a internação,
pesando 17kg, recebendo hidrocortisona oral, orientado a retornar
para consulta ambulatorial em 2 semanas.
Discussão
A produção insuficiente de hormônios adrenais
pode ocorrer como resultado de doenças do córtex adrenal
(insuficiência adrenal primária), ou do sistema hipotalâmico-pituitário
por secreção deficiente de hormônio liberador
de corticotrofina (insuficiência adrenal central) ou do hormônio
adrenocorticotrófico (insuficiência adrenal secundária)().
A insuficiência adrenal primária pode ser congênita
ou adquirida. As formas congênitas são bastante raras
e costumam manifestar-se no período neonatal ou nos primeiros
meses de vida(),
excetuando-se a adrenoleucodistrofia, que aparece no final da primeira
década, mas cursa com graves alterações neurológicas
como cegueira, surdez, demência, quadriparesia e morte().
As formas adquiridas de insuficiência adrenal primária
têm como modelo básico a doença de Addison que,
originalmente, tinha a tuberculose como causa mais comum. Atualmente,
a maior parte dos casos de doença de Addison estão
relacionados à destruição auto-imune das adrenais
(adrenalite auto-imune) ou são idiopáticos().
O sinal mais específico de insuficiência adrenal primária
crônica é a hiperpigmentação da pele
e mucosas em decorrência dos altos níveis de hormônio
adrenocorticotrófico (ACTH) circulantes. Os achados de laboratório
costumam ser hiponatremia (freqüente), hiperpotassemia, acidose
e discreta elevação da creatinina sérica. O
diagnóstico é confirmado pela presença de valores
séricos muito baixos de cortisol, combinados com altos níveis
de ACTH, além de ausência de resposta ao teste de estimulação
com ACTH().
Ainda são relatados dois outros tipos de insuficiência
adrenal primária adquirida que também possuem uma
natureza auto-imune:
1) síndrome auto-imune poliglandular tipo I, que ocorre
no início da vida e associa-se com candidíase mucocutânea,
hipoparatireoidismo e, pouco freqüentemente, com diabetes melito
insulino-dependente ou com insuficência tireoidiana;
2) síndrome auto-imune poliglandular tipo II que ocorre
mais tardiamente e está associada com doença tireoidiana,
diabete melito insulino-dependente ou com os dois ao mesmo tempo,
mas sem hipoparatireoidismo().
A insuficiência adrenal primária adquirida pode também
estar relacionada com infecção por HIV ou por infecções
oportunistas a ele associadas(),
assim como com muitos outros microorganismos e com certas drogas().
O paciente apresentado neste caso manifestou, durante aproximadamente
4 anos, sinais e sintomas bastante sugestivos, embora inespecíficos,
de insuficiência adrenal como náuseas, vômitos,
anorexia, astenia, perda acentuada de peso e dificuldade em tolerar
temperaturas baixas.
Internou-se em coma sem sinais meníngeos e sem história
de trauma de crânio. Não havia história familiar
de epilepsia ou de crises convulsivas prévias no paciente.
Não houve exposição a substâncias tóxicas,
drogas ou medicações que tivessem possibilidade de
causar convulsões e coma ou de precipitar uma crise adrenal
aguda. Na nossa avaliação inicial, o dado que mais
chamou atenção foi a coloração escura
da pele do menino.
Com os dados de história, exame físico e resultados
iniciais de laboratório, levantou-se a hipótese de
crise adrenal aguda precipitada pela infecção pulmonar
e, provavelmente, secundária à insuficiência
adrenal primária crônica (doença de Addison).
Foi solicitada dosagem de cortisol sérico e, em vista do
valor extremamente baixo encontrado, solicitou-se então dosagem
de ACTH e iniciou-se a reposição hormonal com hidrocortisona.
O resultado bastante elevado do ACTH confirma, na prática,
a hipótese inicial de insuficiência adrenal primária
crônica, embora deva ser ressaltado o fato de não ter
sido feito o teste de estimulação com ACTH, que seria
o exame mais adequado para o diagnóstico definitivo().
Pelo fato de não termos possibilidade de prosseguir a investigação
etiológica, decidiu-se encaminhar o paciente para complementação
diagnóstica em outro serviço.
Paterson()
relata dois casos de atraso no diagnóstico da doença
de Addison: um paciente de 20 anos de idade (4 dias até o
diagnóstico) e outro de 70 anos (5 semanas até o diagnóstico,
sendo que o paciente foi a óbito), concluindo que as manifestações
clínicas iniciais de insuficiência adrenal são
inespecíficas, e as anormalidades laboratoriais muitas vezes
não são severas, o que poderia contribuir para atrasar
o diagnóstico.
Em pacientes com insuficência adrenocortical, o rápido
reconhecimento e o tratamento imediato, mesmo sem confirmação
diagnóstica definitiva, são fundamentais e, muitas
vezes, salvam a vida do paciente. Torna-se importante ter em mente
que hiponatremia com sódio urinário elevado nem sempre
indica a presença de síndrome da secreção
inapropriada do hormônio anti-diurético, e a hipótese
de doença de Addison deve ser sempre considerada, especialmente
se houver hipercalemia associada().
Deve também ser salientado que o achado de sódio
sérico normal não exclui necessariamente o diagnóstico
de doença de Addison, embora evidentemente o torne menos
provável, constituindo-se em outro fator que pode contribuir
para atrasar o diagnóstico()
Na hipótese de realmente ter havido atraso no diagnóstico,
este retardo pode ter trazido conseqüências graves para
o crescimento e desenvolvimento deste paciente.
Fica o alerta para a necessidade de manter-se alto grau de suspeição
quanto à possibilidade da presença de insuficiência
adrenal em pacientes que se apresentem com hiponatremia, mesmo que
não tenham hipercalemia concomitante, especialmente quando
não há alterações clínicas e
laboratoriais compatíveis com a associação
de insuficiência renal. Nestas situações, o
tratamento hormonal de emergência deve ser iniciado, mesmo
sem confirmação laboratorial definitiva da deficiência
de cortisol, baseado-se apenas nas dosagens anormais de eletrólitos
séricos e urinários.
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