Introdução
Do nascimento até a adolescência ocorrem síndromes
dolorosas. Essas queixas de dor acometem número considerável
de crianças, causando sofrimento delas e de seus familares,
além de demandar gastos sociais. No primeiro ano predominam
as cólicas, nos pré-escolares as dores de crescimento,
entre os 4 e 12 anos as dores abdominais, e nos adolescentes as
cefaléias ().
Novas causas orgânicas para a dor abdominal recorrente (DAR)
têm sido identificadas. As informações da motricidade
do tubo digestivo na infância começam a crescer. Está
estabelecido que a dor tem um componente nociceptivo (estruturas
nervosas para receber e transmitir a dor) e um componente emocional
(estado mental), ambos influenciados pela genética, experiências
individuais e ambiente cultural. O conhecimento das influências
biopsicossociais entre criança e dor recorrente tem aumentado().
Essas aquisições permitem novas abordagens diagnósticas
e terapêuticos para a DAR na infância. A DAR não
é apenas um sintoma, e sim uma entidade pediátrica
distinta.
Definição
e classificação
A DAR, em crianças, é definida quando da ocorrência
de três ou mais episódios de dor no abdome, em período
não inferior a três meses. Esses episódios devem
ser graves o suficiente para interromper as atividades cotidianas.
O paciente mantém-se assintomático entre as crises
dolorosas(,).
A DAR é a causa mais comum de dor recorrente em escolares.
Pode ser de origem orgânica ou funcional (DARF). Esta última
é definida quando não se estabelece uma causa anatômica,
infecciosa, inflamatória não infecciosa ou bioquímica
para a dor().
Como sua etiologia e patogênese não estão estabelecidas,
e não há marcadores específicos, a DARF é
um diagnóstico de exclusão baseado em história
clínica detalhada, exame físico aprimorado e poucos
testes laboratoriais(,).
A DAR pode manifestar-se como paroxismos isolados de dor periumbilical,
dor no abdome com dispepsia e dor abdominal com disfunção
do tubo digestivo. Sinais e sintomas de dispepsia incluem náusea,
vômito, regurgitação, pirose, saciedade precoce,
soluços e desconforto abdominal. As manifestações
de disfunção do tubo digestivo incluem diarréia,
constipação e sensação de evacuação
incompleta. Setenta e cinco por cento das DARs são funcionais
com paroxismos isolados de dor em torno do umbigo e 20% apresentam
manifestações de dispepsia ou disfunção
do tubo digestivo. Apenas cerca de 5% a 10% das crianças
que manifestam DAR apresentam uma causa orgânica(,).
Epidemiologia
Vários estudos mostram que a DAR incide em 10% a 18% das
crianças entre 4 e 16 anos. Essas variações
devem-se a diferenças geográficas, raciais e critérios
de diagnóstico. Outros 15% de escolares e adolescentes apresentam
episódios de dor abdominal em período superior a 3
meses, porém sem comprometimento das atividades().
As meninas são mais acometidas em proporção
próxima de 1,5:1 em relação aos meninos. Inicia-se,
habitualmente, a partir dos 4 anos de idade, e há um aumento
constante do número de casos entre 4 e 5 anos, com declínio
após essa idade nos meninos e aumento marcante de novos casos
em meninas até os 10 anos().
Determinar o início da DAR é importante por apresentar
valor no prognóstico. O aparecimento precoce da dor está
associado à sua má evolução.
Etiologia
e fisiopatologia da DARF
Na etiologia e fisiopatologia da DARF devem ser considerados a
predisposição genética, o sistema nervoso autônomo,
o estresse e o processo inflamatório do tubo digestivo. Como
existem pacientes com manifestações concomitantes
de dispepsia e movimentos anormais do intestino, parece que as diversas
manifestações dolorosas são devidas ao mesmo
processo. Estudos controlados não demonstraram relação
entre alterações emocionais e a dor recorrente(,).
As alterações psíquicas não são
causas primárias da DARF, porém, evidentemente, os
processos emocionais funcionam como gatilhos da dor.
Nas famílias de crianças com DARF é freqüente
a identificação de queixas dolorosas tais como úlcera
péptica, colo irritável e enxaqueca, sugerindo predisposição
genética para a dor e comprometimentos funcionais nestes
pacientes. A presença de cefaléia, palidez e vertigem
nessas crianças revela a participação do sistema
nervoso autônomo. Fatores estressantes, físicos e psicossociais,
muitas vezes desencadeiam as crises dolorosas. Deve haver participação
da inervação extrínseca dos intestinos e/ou
sistema nervoso central com alteração no limiar da
percepção dolorosa. Encontra-se em todo o tubo digestivo
das crianças com DARF processo inflamatório discreto
e inespecífico, causa ou conseqüência da motilidade
intestinal alterada. Esta inflamação afeta funções
endócrinas e neurais que influenciam processos imunológicos.
As células imunocompetentes residentes do intestino secretam
citocinas e mediadores inflamatórios que atuam nos neurônios
entéricos. O sistema nervoso intestinal e central modulam
a resposta imunológica através de neurotransmissores
e neuropeptídeos que afetam a função linfocitária.
Essas inter-relações têm implicações
na dor DARF(,).
A patogênese atualmente mais aceita da DARF são mudanças
na motilidade gastrintestinal e/ou hipersensibilidade visceral.
Padrão específico de alterações motoras
intestinais na DARF não foi determinado. Estudos em grupos
heterogêneos de adultos com DARF mostram aumento da intensidade
da contração muscular do intestino e trânsito
aumentado. Poucos estudos controlados em crianças mostram
aumento de trânsito intestinal, resposta motora colônica
exacerbada à estimulação farmacológica
e contrações duodenais de grande amplitude(,,).
O aumento da sensibilidade dolorosa visceral em crianças
com DARF é sugerido por estudos feitos em adultos com cólon
irritável que mostram diminuição do limiar
de dor em todos os segmentos do tubo digestivo().
A melhora da dor recorrente com a alteração da dieta
pela retirada de substâncias produtoras de gases (lactose,
frutose, sorbitol), provocadoras de distensão do tubo digestivo,
ou de ácidos graxos, que modificam a motilidade entérica,
apontam para alterações da sensibilidade visceral
ou da motilidade intestinal presentes na DARF(,,).
Estudo recente, em crianças com DARF, mostrou a associação
entre diminuição do limiar de dor, induzida por pressão,
em toda a superfície corporal, sugerindo o comprometimento
do sistema nervoso central na percepção dolorosa desses
pacientes. O limiar de dor diminuído predisporia ou iniciaria
as crises de dor().
Fatores
que exacerbam a DARF
Freqüentemente as crianças com DARF apresentam má
adaptação ao processo doloroso. São fatores
de ordem ambiental, comportamental e emocional que as fazem sentir
mais dor ou as predispõem a novos episódios dolorosos.
Fatores ambientais
Pacientes com DARF não têm conhecimento sobre a etiologia
e o prognóstico das crises dolorosas. Mantêm expectativa
de que as dores irão recorrer. Não conseguem impedir
novos episódios dolorosos e não dominam técnicas
que os amenizem. Em conseqüência, ocorre o aumento do
estresse emocional, predispondo a maior percepção
dolorosa. O pouco conhecimento sobre dor leva os pais a atribuírem
a certos fatores externos o desencadeamento das crises, dentre os
quais estão os alimentos, as condições do ambiente
e as atividades cotidianas normais da vida infantil. A ansiedade
da criança frente a esses falsos gatilhos desencadeia ou
intensifica a dor. O paciente passa a ter comportamento fóbico
com atividades sociais e escolares restritas, levando uma vida muito
diferente da de outras crianças. Esse estresse cria ou intensifica
os episódios dolorosos().
Fatores comportamentais
O que a criança sabe sobre dor vem de sua própria
experiência, do conhecimento de seus pais e familiares e da
sociedade. Aprende a comunicar as crises com palavras e mudanças
de comportamento e adquire técnicas para aliviar o processo
doloroso. Geralmente os pais não sabem como lidar com a dor.
Eles respondem de maneira ambígua à crise dolorosa.
Algumas vezes dispensam grandes cuidados físicos e emocionais.
Em outros episódios sugerem que o paciente seja o único
responsável no manejo da dor. A criança entende que
as manifestações dolorosas devem ser comunicadas com
atitudes exageradas para receber um melhor suporte parental. Este
comportamento mantém a dor.Os pais também encorajam
o filho, após as crises, a não ir à escola,
repousar, evitar atividades físicas estressantes, não
cumprir compromissos sociais e não fazer atividades desagradáveis.
Dispensam-no das responsabilidades familiares. Ocorrem, portanto,
ganhos secundários que iniciam ou prolongam o processo doloroso.
A criança torna-se frustrada, isolada e ansiosa. Adquire
atitudes passivas frente à dor. A passividade intensifica
a percepção dolorosa. Todos esses aprendizados irão
manter e intensificar a DARF().
Fatores emocionais
A dor de repetição é de natureza aversiva,
causando estresse prolongado na família e no paciente. A
criança torna-se ansiosa, medrosa, frustrada, irada, triste
e deprimida. Essas emoções exacerbam o estresse que
inicia ou mantém a dor, criando um círculo vicioso:
dor - estresse emocional - dor().
A criança com DARF apresenta grande expectativa sobre ela
própria em vários aspectos da vida (escola, família
e esporte). Deseja altos padrões de performance mesmo que
tenha um desempenho adequado. Em conseqüência, frustra-se
com freqüência, aumentando o risco de desenvolver manifestações
somáticas de estresse().
Em resumo, as crianças com DARF não apresentam acurácia
no entendimento da doença, mantêm controle limitado
da mesma, desconhecem os resultados do tratamento e prognóstico,
têm distúrbios do comportamento e apresentam grau elevado
de ansiedade e medo. Esses fatores estressantes são predisponentes
à mudança na percepção dolorosa, tornando
a vida com mais dor limitada e de baixa qualidade, além de
causar sofrimento familiar.
DARF com
paroxismos isolados de dor periumbilical
Neste tipo de DARF os episódios de dor duram menos de 1
hora em 50% das crianças e menos de 3 horas em 40%. O tempo
é mais prolongado no restante. As dores variam de gravidade
e freqüência no mesmo paciente. A criança aponta
com a mão para a região do umbigo como o local onde
a dor é mais intensa. Não há relato de irradiação
dolorosa. Raramente há relação temporal com
alimentos, atividades e hábitos intestinais. Os paroxismos
não ocorrem durante o sono, mas podem impedir a criança
de dormir. Durante as crises mais intensas podem ocorrer sinais
e sintomas associados: cefaléia, palidez, náusea,
vertigem, prostração e febre baixa (37,2ºC a
37,7ºC). Também são observados sinais motores
para o alívio da dor, como dobrar o corpo sobre o abdome
e comprimi-lo com as mãos(,).
Entre as crises, a criança apresenta-se sem queixas e sem
alterações ao exame físico. Na história
pregressa é comum o relato de cólicas, refluxo gastroesofagiano,
anorexia, mudanças de fórmulas lácteas, medo,
distúrbios do sono, temores, enurese noturna e dificuldade
escolar. Na história familiar são freqüentes
relatos de sintomas psicofisiológicos e doenças funcionais
como intestino espástico, colo irritável, colite mucosa
ou espástica, assim como problemas maritais, desavenças
entre irmãos, doenças recentes de parentes ou outros
conflitos. Ao examinarmos a personalidade, encontramos pacientes
hiperativos, superexigentes e com intolerância à frustração.
São boas crianças em termos de atitudes,
comportamento e maturidade. Assumem mais responsabilidade em relação
à faixa etária. São agressivos com a falta
de sensibilidade dos adultos para com a sua doença, toleram
pouco a crítica e vivem sob medo(,,)
.
As causas de DAR com paroxismos isolados de dor periumbilical são
listadas na Tabela 1. Um diagnóstico positivo da apresentação
funcional é feito quando estiverem presentes os seguintes
achados:
a) início da dor entre 4 e 16 anos;
b) cronicidade do processo, com pelo menos 3 episódios de
dor em período não inferior a 3 meses;
c) crises dolorosas periumbilicais sem irradiação;
d) exame físico normal, incluindo toque retal;
e) identificação, no ambiente, de fatores que reforçam
o comportamento doloroso;
f) exames laboratoriais normais: hemograma, velocidade de hemossedimentação,
rotina e cultura de urina, parasitológico de fezes, presença
de sangue nas fezes, radiografia simples e ultra-som abdominais.
Tabela 1 - Causas de dor abdominal recorrente (DAR) com paroxismos
isolados de dor periumbilical
O hemograma orienta sobre a presença de infecções
e anemias hemolíticas. A hemossedimentação
alterada aponta para doenças inflamatórias. Exames
de urina sugerem infecções ou cálculos. O parasitológico
de fezes deve ser feito pela elevada prevalência de parasitas
em nosso meio. A identificação de sangue nas fezes
aponta para doenças inflamatórias intestinais. Rx
e ultra-som abdominais mostram a presença de cálculos
renais e biliares, malformações anatômicas e
principalmente constipação oculta. Uma abordagem diagnóstica
da DARF com paroxismos isolados de dor periumbilical é mostrada
na Figura 1.
Figura 1 - Algorítmo para o diagnóstico da dor abdominal
recorrente funcional (DARF) com paroxismos isolados de dor periumbilical
Há sinais e sintomas de alerta que
sugerem origem orgânica para os paroxismos isolados de dor
abdominal, tais como perda de peso, desaceleração
do crescimento, dor distante da região umbilical, dor que
acorda a criança à noite, manifestações
extra-intestinais (febre, erupções na pele, dor articular,
aftas recorrentes e disúria), presença de sangue nas
fezes, diarréia crônica, anemia, velocidade de hemossedimentação
elevada e história familiar de doença ulcerosa ou
inflamatória do tubo digestivo(,).
A presença dessas alterações, associadas a
outras mais específicas de cada causa orgânica, orienta
para propedêutica específica (Tabela 1).
O tratamento da DARF deve enfatizar os fatores emocionais, por
meio de conversas com a família, usando abordagem positiva
quando o problema estiver sendo exposto. À medida que a transição
do enfoque orgânico para o funcional ocorre, o paciente terá
alívio da dor sem necessitar de maiores intervenções
cognitivo-comportamentais. O primeiro e mais importante passo é
a obtenção de uma história detalhada. Para
alcançar esse objetivo, é necessário deixar
a família e a criança falarem; seu corpo, seus gestos,
sua voz têm que ser ouvidos. Entrevistas conjuntas e individuais
com os pais e a criança são componentes essenciais
dessa ausculta. Detalhes da dor, do ambiente familiar, social e
escolar, dos antecedentes familiares e pessoais são importantes
para compor o diagnóstico. Deve-se procurar identificar o
que motivou a procura de auxílio médico naquele momento
de um processo crônico como o da DAR, e saber por que os pais
e, eventualmente, a criança, elegeram aquele episódio
de dor para consultar. Além disso, deve-se valorizar cada
episódio de dor como sendo dor aguda, já que uma criança
com DAR não está isenta de desenvolver uma doença
aguda, como por exemplo apendicite. O tratamento da DARF, que começa
na primeira consulta, visa a:
a) esclarecer os pais quanto à autenticidade da dor; não
se trata de simulação ou imaginação,
e sim de dor real;
b) introduzir o conceito de doença funcional;
c) explicar o possível papel da alteração
de motilidade do tubo digestivo e da sensibilidade visceral na gênese
da dor;
d) orientar sobre a relação entre sistema nervoso
central, motilidade e sensibilidade intestinais; o comportamento
doloroso deve ser explicado na perspectiva de um aprendizado social;
e) mostrar a benignidade da DARF;
f) tranqüilizar familiares e a criança quanto à
possibilidade de doenças orgânicas graves;
g) introduzir o conceito de gatilho no desencadeamento das crises
nas doenças funcionais;
h) diagnosticar possíveis fatores do comportamento da criança
que desencadeiam ou pioram o quadro doloroso;
i) abolir os ganhos secundários da dor recorrente como mimos,
privilégios e maior atenção familiar;
j) aconselhar os pais a ignorar comportamentos dolorosos não
verbais e redirecionar a criança para uma atividade, quando
houver um comunicado verbal da dor. Se a criança concordar,
deve receber elogios, e serão ignoradas novas queixas se
estas continuarem. Os cuidados parentais serão firmes e discretos.
A crise dolorosa não dever subverter a dinâmica familiar;
k) garantir que a vida do paciente seja normal. As atividades só
serão interrompidas no momento da crise. Isso é válido
tanto no ambiente familiar quanto no ambiente social e na escola.
Após a crise, a vida continua. Serão feitos reforços
comportamentais para os dias sem dor. Eles serão registrados,
por exemplo, em calendário e, para um número de dias
na semana sem comportamento doloroso, pode ser dada uma recompensa
escolhida pela criança. Esse procedimento, feito durante
todo o tratamento, será revisto periodicamente com o objetivo
de aumentar o número de dias livres de dor para as novas
premiações. O uso de escala para avaliar a intensidade
da dor, como a de cores, permite ao paciente verificar de forma
objetiva seus progressos;
l) ensinar ao paciente técnicas que diminuam a intensidade
da dor durante as crises, desviando a atenção da percepção
dolorosa, como assoviar, cantar, pular, correr, estalar os dedos,
contar ou fazer cálculos matemáticos com o pensamento.
Também orienta-se sobre técnicas de relaxamento, para
diminuir a dor, como assentar, escrever, andar e deitar de forma
confortável. Se as crises não melhorarem, ensina-se
o auto-reforço com auto-verbalização positiva.
A dor persistindo utilizam-se estratégias de imaginação,
onde, por exemplo, a dor está sendo destruída pelo
seu super-herói ou o paciente imagina e coloca-se em situações
agradáveis;
m) elucidar o que são sinais de alerta, mostrando a importância
da comunicação imediata com o médico quando
forem observados(,).
Esses procedimentos têm como objetivo diminuir a ansiedade
dos pais e pacientes e, principalmente, abolir comportamentos e
situações que desencadeiam, mantêm ou intensificam
a percepção dolorosa(,).
Um estudo usando esses procedimentos mostrou que 87% das crianças
estavam livres da dor em 3 meses. No grupo controle, onde era feito
tratamento convencional, apenas 37,5% ficaram assintomáticas().
A criança deve fazer consultas periódicas, principalmente
nos primeiros 6 meses, para que sejam reforçados e esclarecidos
os conceitos de DARF e as maneiras de lidar com a dor. Verificam-se
nesses encontros se ainda estão presentes os ganhos secundários,
gatilhos, sinais e sintomas de alerta ou outros achados que sugiram
doença orgânica. Trata-se, portanto, de uma observação
ativa do paciente, da sua família e de seu ambiente.
O tratamento psiquiátrico só está indicado
quando a criança internalizar de forma extrema o comportamento
doloroso (depressão, ansiedade e baixa auto-estima, ou quando
verificados sintomas de conversão), não conseguir
levar uma vida normal apesar de terem sido retirados os fatores
danosos do ambiente, ou a família não conseguir lidar
com o processo doloroso().
O uso contínuo de medicação (anticolinérgicos,
antiespasmódicos, anticonvulsivantes) no tratamento da DARF
não foi comprovado como benéfico, ao contrário,
irá manter o comportamento doloroso. Drogas em crianças
com DARF reforçam o estado de hipocondria e a dependência
medicamentosa().
Um único trabalho randomizado, duplo cego, placebo controlado
mostrou redução de 50% das crises de dor ao acrescentar
fibra na dieta dessas crianças().
Estes resultados não foram reproduzidos. Algumas vezes a
diminuição de açúcares (lactose, frutose,
sorbitol e amido) na dieta tem mostrado alguma melhora das crises(,,).
Provavelmente a fermentação dos carboidratos produz
gás que distende o intestino hipersensível causando
dor ou aumentando a osmolaridade do bolo alimentar que alteraria
a motilidade intestinal.
DARF
com dispepsia
A manifestação de dispepsia é definida como
dor recorrente ou persistente ou como desconforto que ocorrem na
parte superior do abdome, causada por doenças orgânicas
(refluxo, doença péptica, doença de Crohn)
ou funcionais. Estas últimas apresentam manifestações
semelhantes à úlcera péptica ou às alterações
da motilidade intestinal. No padrão ulceroso predomina a
dor epigástrica que precede a alimentação e
é aliviada por alimentos e antiácidos. Nas alterações
de motilidade a dor não é o principal sintoma. Ocorrem
regurgitações, vômitos, náuseas, saciedade
precoce e desconforto abdominal. Entretanto, há variações
consideráveis e sobreposição de sinais e sintomas
entre os grupos().
A DARF com dispepsia é influenciada pelos mesmos fatores
ambientais e do comportamento que os paroxismos isolados de dor
periumbilical. Não há sinais e sintomas que possam
distinguir entre dispepsia orgânica e funcional. O diagnóstico
só deve ser feito quando houver história característica
de dor recorrente com exame físico normal (exceto alguma
dor à palpação no andar superior do abdome)
e exames complementares inalterados: hemograma, velocidade de hemossedimentação,
amilase e lipase séricas, aminotransferases, pesquisa para
H. pylori, parasitológico de fezes, estudo radiológico
contrastado do esôfago, estômago, duodeno e intestino,
ultra-som abdominal e endoscopia digestiva alta().
Os sinais sintomas de alerta para causas orgânicas são
a dor epigástrica que irradia para as costas, sangue nas
fezes ou nos vômitos, perda de peso, febre, vômitos
persistentes, diarréia, disfagia, hepatomegalia, esplenomegalia,
massa ou macicez abdominal e edema articular. As causas de DAR com
dispepsia são listadas na Tabela 2.
Tabela 2 - Causas de dor abdominal recorrente (DAR) com dispepsia
O tratamento da DARF com dispepsia baseia-se em orientar o paciente
e os pais sobre a autenticidade da dor, sobre conceitos de dor funcional,
sobre fatores que mantêm, pioram e melhoram o processo doloroso
e sobre o prognóstico da doença. Essa abordagem é
discutida na DARF com paroxismos isolados de dor periumbilical.
Os adultos com dispepsias funcionais são às vezes
tratados com medicações. Os que apresentam padrão
ulceroso recebem antagonistas de receptores histamínicos
2 e recomendação para o não uso de fumo, cafeína,
medicação antiinflamatória não esteróide
e ácido acetil salicílico. Os que têm sinais
e sintomas sugerindo motilidade alterada são medicados com
procinéticos (cisaprida ou metoclorpramida ). Não
há dados comprobatórios dos benefícios destas
intervenções em crianças com DARF e dispepsia.
O uso de medicações reforça o comportamento
doloroso().
DARF
com disfunção do tubo digestivo
A DAR com disfunção intestinal é caracterizada
por dor habitualmente no andar inferior do abdome, que é
exacerbada ou aliviada com os movimentos intestinais. Há
o alívio da dor com as evacuações ou a associação
de dor com mudanças na freqüência ou consistência
das fezes, sensação de evacuação incompleta,
urgência ou esforço evacuatório, passagem de
muco, desconforto e distensão abdominal().
A causa mais freqüente de DAR com disfunção
do tubo digestivo é a síndrome do intestino irritável
funcional que é equivalente ao intestino irritável
do adulto. Acomete principalmente adolescentes e manifesta-se de
duas maneiras, com predomínio da diarréia ou da constipação,
com padrões variáveis de defecação.
O diagnóstico é feito pela história típica
(DAR com padrão de disfunção intestinal), exame
físico normal, inclusive com toque retal e testes laboratoriais
sem alterações: hemograma, velocidade de hemossedimentação,
pesquisa de parasitas, ovos, cistos e sangue oculto nas fezes().
Os sinais e sintomas de alerta sugerindo doença orgânica
são dor ou diarréia que interrompem o sono, presença
de sangue nas fezes, atraso do crescimento, febre, erupções
na pele, dor ou edema articular, fístula, fissuras ou úlceras
perianais. As causas de DAR com disfunção do tubo
digestivo estão listadas na Tabela 3.
Tabela 3 - Causas de dor abdominal recorrente (DAR) com padrão
intestinal alterado
O tratamento da síndrome do intestino irritável funcional
segue as mesmas orientações da DARF com paroxismos
isolados de dor periumbilical. Deve-se dar orientação
aos pais e ao paciente sobre a autenticidade da dor, o conceito
de dor funcional, os fatores que mantêm, intensificam e atenuam
a crise dolorosa, assim como orientação sobre o prognóstico.
Entretanto, os pacientes nos quais predomina o sinal diarréia
beneficiam-se com o uso de antidiarréicos. As crianças
com tendência à constipação melhoram
com procinéticos e uso de fibras. O uso excessivo de carboidratos
deve ser evitado pela produção de gases. Deve-se dar
orientação sobre como se alimentar pausadamente, evitando
aerofagia. Em algumas crianças recomenda-se o uso de simeticona().
Prognóstico
da DARF
Alguns estudos retrospectivos e poucos prospectivos avaliam a evolução
da DARF na infância. Dois meses após o diagnóstico,
30% a 50% das crianças acometidas não mais se queixam
de DAR. Isso ocorre quando pais e pacientes aceitam a associação
entre estresse e dor. Alguns (25%) continuam com sintomas dolorosos
por 5 anos. Trinta a cinqüenta por cento irão ter dores
abdominais na idade adulta, porém em 70% a dor não
interfere com as atividades. Um terço das crianças
com DARF desenvolverão outras dores quando adultos: cefaléias,
dores nas costas e dores menstruais. Trinta por cento dos adultos
com síndrome do colo irritável relataram seu início
na infância. A possibilidade de as crianças desenvolverem
doença orgânica, como doença de Crohn, é
menor que 2%(,,).
O melhor prognóstico da DARF ocorre em famílias sem
queixas de dor; em meninas; quando o início das crises de
dor é após os 6 anos; quando o tratamento inicia-se
antes de 6 meses de duração do processo doloroso.
O pior prognóstico é observado nas famílias
com manifestações dolorosas; em meninos; quando o
início da dor for antes dos 6 anos; quando ocorre procura
tardia pelo tratamento.
Conclusões
A ambigüidade de atitudes que essas dores provocam na maioria
dos médicos e das famílias induz, freqüentemente,
a uma pletora de exames. De há muito conhece-se a impropriedade
dessa postura. Em revisão de prontuários de crianças
internadas para avaliação de crescimento deficiente,
naquelas com problemas orgânicos o diagnóstico foi,
em todos os casos, fortemente sugerido pela história e pelo
exame físico. Nenhum exame teve valor positivo sem indicação
específica da avaliação clínica().
Quando se realizam muitos exames sem critério, além
do desconforto e do custo acarretado, existem outras razões
para ser previdente nos casos da criança com dor recorrente.
Há a possibilidade de se encontrar algum exame falso positivo
e o paciente ser diagnosticado e, freqüentemente, tratado de
algo inexistente. A falha em reconhecer isso já foi jocosamente
nomeada como síndrome de Ulisses, em alusão ao herói
mitológico grego: o uso desnecessário e não
crítico de exames laboratoriais induzindo a longas jornadas
de investigação, levando a criança e sua família
à expedição desnecessária, dispendiosa
e às vezes perigosa, para chegar ao ponto de partida().
Alcançar um equilíbrio, saber a medida das coisas,
não perder tempo, nem suprimir etapas no processo de investigação
e de tratamento da DAR deve ser o objetivo do pediatra, colocado
frente a uma criança e sua amília com esse problema.
Não como um porto seguro, mas como uma bússola, deve-se
saber que o prognóstico da DARF é bom, que apenas
cerca de ¼ dos paciente continuam a apresentar sintomas dolorosos,
após cinco anos do início das dores. As complicações
orgânicas tardias nesse grupo de crianças são
raras. Essas atitudes ajudam o pediatra a navegar nessas águas
calmas, porém não cristalinas().
|